4 de setembro de
2011
Imagine o seguinte cenário: um grupo separatista fortemente armado
assume o controle militar do Rio Grande do Sul e proclama a
independência do estado.
Naturalmente, o governo federal envia tropas para a região, visando
retomar o controle dos bens ocupados e desalojar os rebeldes.
O
presidente da França se declara então preocupado com a situação e diz
temer pela vida dos rebeldes. Ao mesmo tempo, o primeiro mandatário dos
Estados Unidos e o recém-empossado primeiro-ministro da Inglaterra
convocam seus aliados para uma reunião de emergência da Organização dos
Estados Americanos (OEA).
Por
sua vez, o presidente brasileiro responde dizendo que apenas cumpre sua
missão constitucional de preservar a unidade do país, declara que não
tem nenhuma intenção de massacrar os rebeldes e propõe aos opositores
uma conciliação.
No
debate que se segue, o presidente brasileiro lembra ao seu homólogo
francês a velha relação de amizade que mantêm e termina inclusive por
cometer uma inconfidência ao afirmar que colaborou financeiramente para
sua eleição, o que irrita o presidente da França.
Estimulado por uma declaração da OEA de que é necessário se preocupar
com a situação explosiva no sul do Brasil, o Conselho de Segurança das
Nações Unidas vota finalmente uma resolução estabelecendo uma zona de
restrição do tráfego aéreo na região afetada e incumbe a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN) de realizar todos os esforços para
preservar a vida da população civil do país, assim como dos rebeldes do
Rio Grande do Sul.
Poucos dias depois, a aliança militar da OTAN inicia um intenso
bombardeio sobre o território brasileiro, despejando ao longo de 150
dias mais de 50 mil objetos explosivos no país, o que aniquila sua
infraestrutura física: iluminação pública, estradas, portos, escolas,
hospitais, projetos hidráulicos, prédios públicos, sem contar
naturalmente as instalações militares e a própria população civil, que a
OTAN deveria naturalmente respeitar.
Curiosamente, as instalações petrolíferas e as obras do projeto
bilionário do pré-sal são preservadas porque os países que compõem a
OTAN têm consciência que é dessa atividade econômica que virão os seus
lucros, no momento em que o governo do Brasil for finalmente derrotado.
A
história pode parecer inverossímil e provavelmente jamais acontecerá na
nossa terra mas se pensarmos em um país vizinho como a Venezuela, por
exemplo, ela se torna perfeitamente factível e até provável.
Assim como o Brasil e a Venezuela, a Líbia é um país com vastos recursos
naturais que despertam o apetite de algumas nações da OTAN, hoje
envolvidas em uma grande crise econômica e financeira.
Se
considerarmos que o ditador da Líbia, um político carismático que a
despeito de ter governado o país com mão de ferro realizou obras
notáveis e impulsionou inúmeros projetos em toda a África, nacionalizou
o petróleo, construiu um gigantesco sistema de irrigação – chamado de
Grande Rio Feito pelo Homem, uma das maiores obras de engenharia da
história – elevou o padrão de vida de seu povo e estava se preparando,
no momento em que foi derrubado, para abandonar o padrão dólar e
retornar ao ouro, verificamos que suas posições se chocavam frontalmente
com os objetivos da OTAN.
Descoberto em 1953, durante o processo de pesquisa por poços de petróleo
no sul da Líbia, em 1969 o governo de Kadhafi decidiu explorar o
gigantesco aquífero que tem uma capacidade estimada entre 4.800 e 20 mil
km cúbicos de água. Desde 1991, seus recursos começaram a jorrar do
fundo do Deserto do Saara por 1.200 km em direção ao norte, onde vive
90% da população, fornecendo um milhão de metros cúbicos de água por dia
para as cidades de Benghazi e Sirte.
Os
cursos d’água deste projeto de US$ 30 bilhões compreendem uma rede de
quatro mil km de dutos de concreto com quatro metros de diâmetro,
sepultada sob o deserto para impedir a evaporação. Ao todo, são 1.500
poços, 500 mil tubulações e cerca de 250 milhões de metros cúbicos de
escavação. Todo o material para o projeto foi construído no país.
Grandes reservatórios fornecem o armazenamento, enquanto estações de
bombeamento controlam o fluxo para as cidades. O aqueduto alcançou
Trípoli em 1996 e quando a Fase V estiver concluída, esse precioso
recurso vai permitir que 155 mil hectares de terras sejam cultivados.
Em
22 de julho deste ano, depois de quatro meses de ataques aéreos para
“proteger os civis”, as forças da OTAN atingiram o aqueduto do Grande
Rio Feito Pelo Homem. No dia seguinte, a ação humanitária da Aliança
Atlântica destruiu a fábrica próxima a Brega que produz as peças de
reposição da obra, matando também seis guardas da instalação.
A
contínua destruição das estações geradoras de energia elétrica, além de
obstaculizar o acesso da população civil a esse recurso, passou então a
impedir o bombeamento da água e tornou inviável a utilização do aqueduto
mesmo em áreas onde a infraestrutura ainda permanecia intacta. Com isso,
70% do abastecimento do país foi comprometido. No entanto, ninguém na
comunidade internacional de nações, nem a própria Organização das Nações
Unidas (ONU), foi capaz de lembrar que o aniquilamento da infraestrutura
civil de um país é um crime de guerra, assim como não apareceu nenhuma
nação ou organização de direitos humanos que atuasse para interromper o
brutal bombardeio.
A
Aliança Militar do Atlântico liderada pelos Estados Unidos, um velho
resquício da Guerra Fria, não tendo mais a missão de combater a União
Soviética e o comunismo, vem há algum tempo estabelecendo novos
objetivos. Como não se fala mais em colonialismo e levando em conta a
sinistra herança da Europa de cinco séculos de destruição, pilhagem,
genocídio, apropriação dos recursos naturais imposta aos povos da
África, América Latina e Ásia, urdiu-se o pretexto de que a razão de ser
da OTAN – além de seus propósitos militares hegemônicos que não
descartam uma confrontação com a China – é a preservação do meio
ambiente – certamente para se apossar de seus recursos, como afirma Noam
Chomsky – e uma abstrata defesa de causas humanitárias.
Naturalmente, nem por um momento a maior aliança militar que já se
constituiu na história do homem reconheceu que, justamente os países que
hoje compõem a OTAN, foram – ao longo dos séculos – os que mais
destruíram o meio ambiente e aniquilaram vidas humanas, executando seis
milhões judeus e cerca de trinta milhões de africanos no antigo Congo
belga, sem contar o rastro de destruição deixado pelas centenas de
expedições punitivas na América Latina, as cruzadas no Oriente e o longo
período de escravidão imposto aos africanos, além de suas próprias
guerras internas como a Guerra dos Trinta Anos, a Guerra dos Cem Anos e
duas conflagrações mundiais.
Como
os terroristas da Al Qaeda – que hoje se declaram arrependidos do
passado e proclamam seu tardio amor à democracia – os membros da OTAN
são agora partidários de causas humanitárias, especialmente quando elas
trazem como recompensa substanciais prêmios como os gordos lucros do
petróleo.
Não
importa que para a realização de seus objetivos grandiosos a Aliança
Atlântica tenha que atuar como uma verdadeira Estrela da Morte dos
filmes de ficção científica, pulverizando nações inteiras com bombas
construídas a partir de resíduos de material radioativo, mísseis guiados
por satélites, armas apresentadas como de alta precisão mas que se
dirigem preferencialmente às populações civis com o objetivo de criar
“choque e terror”, segundo propõem os estrategistas militares.
Enquanto essas armas – que custam cada uma delas cerca de um milhão de
dólares – causam uma inimaginável destruição, os meios de comunicação
propagam a todo o mundo que o país invadido está sendo liberado de seus
governantes, geralmente ex-sólidos aliados dos membros da OTAN e que com
eles mantiveram íntimas relações durante anos.
Dispondo de uma gigantesca máquina da propaganda a seu favor e sob o
efeito estarrecedor das bombas, a chegada vitoriosa dos soldados da OTAN
e de seus acólitos no país é finalmente saudada com alívio por todos,
tanto pelos aliados que compartilham a alegria da vitória quanto pelos
derrotados, estes por acreditarem que estão, enfim, livres do terror
diuturno dos incessantes bombardeios.
Tal
é a sorte que hoje desfruta o povo líbio, que os meios de informação
saúdam como finalmente liberado de um ditador que regeu o país por quase
42 anos. Certamente, muitos que apoiam esta intrépida ação humanitária
dos antigos colonizadores – afinal a Líbia foi dominada pelo atual
invasor italiano até há pouco tempo, além de ter sido flagelada por
inúmeros povos europeus ao longo dos séculos – ainda não se deram conta
de que o preço que deverão pagar por essa benemerência será
provavelmente muito elevado: o saque das riquezas do país, a queda
brutal de sua qualidade de vida, o racismo que começa a dar sinais cada
vez mais assustadores e até mesmo as incipientes manifestações de
intolerância religiosa, como a destruição da grande catedral ortodoxa
cristã da Líbia, que sobreviveu incólume durante o longo período de
vigência de Kadhafi.
No
entanto, muitos certamente terão tempo para recapitular os últimos
acontecimentos, tentando compreender por que uma catástrofe tão pesada
subitamente se abateu sobre sua terra. O certo é que pouco a pouco se
começa a perceber o que realmente ocorreu neste pequeno e rico país do
norte da África. A análise do desdobramento dos fatos certamente irá
lançar luz sobre as vicissitudes dos povos que desde a Renascença têm
sido dominados pela Europa e poderá iluminar seus passos no caminho de
uma libertação definitiva de seus opressores.
Em
1º de setembro de 1991 – data que acaba de completar vinte anos –
durante a cerimônia de inauguração da Fase I do Grande Rio Feito Pelo
Homem, o coronel Muammar Kadhafi proferiu estas palavras diante das
autoridades e da população presentes ao evento:
– Depois deste acontecimento, as ameaças dos Estados Unidos contra a
Líbia vão duplicar... Os americanos irão apresentar muitas desculpas mas
a real motivação será impedir esta grande realização e manter o povo da
Líbia sob constante opressão.
Se
essas palavras foram proféticas, as suas ações – que poderiam ter
impedido que isto acontecesse – não foram coerentes com tão clarividente
premonição.
A
intensificação de sua aliança com os Estados Unidos, a adoção de vários
programas neoliberais, a adesão à sórdida luta contra o terrorismo –
estratagema urdido pelos EUA para oprimir vários povos do mundo – e,
finalmente, o abandono de seu projeto de desenvolvimento de uma
tecnologia nuclear própria, enfraqueceram o governo do coronel Kadhafi e
abriram caminho para o crescimento de seus opositores racistas,
financiados pelas potências coloniais.
Certamente, muitas lições podem e devem ser extraídas dos últimos
acontecimentos na Líbia.
A
primeira – embora nem de longe a mais importante – é que a ONU, um
organismo que se propõe representar todas as nações da Terra e a
encontrar soluções de paz e harmonia para os povos do planeta, é uma
completa fraude e um rotundo fracasso.
Sua
Assembleia Geral – que compreende em torno de 200 países e onde não tem
assento a Palestina e Porto Rico, por exemplo – não possui nenhuma força
deliberativa e o Conselho de Segurança, onde paira de forma quase
onipresente o Estado de Israel e sua política genocida, é apenas a
expressão das potências imperiais, que não têm nenhum interesse na
preservação da paz mundial.
As
forças de paz que desembarcam em várias partes do planeta –
especialmente nos lugares mais pobres como o Haiti, a Somália, o Sudão e
a Palestina – têm sido constantemente responsabilizadas pela prática dos
mais torpes crimes. Há poucos dias, uma investigação constatou que os
“capacetes azuis” estavam sendo acusados de trocar comida por favores
sexuais de crianças do Mali, outra região tormentosa sob ocupação da
ONU.
Durante a crise da Líbia, o secretário-geral da entidade Ban-Ki-moon –
agindo como um verdadeiro pitbull
a serviço dos Estados Unidos – impediu que o ex-chanceler líbio Ali
Treki assumisse seu posto como representante do país nas Nações Unidas.
Quando o padre nicaraguense Miguel D’Escoto, ex-presidente da Assembleia
Geral, foi nomeado para substituí-lo não recebeu visto para entrar nos
Estados Unidos. D’Escoto iria lamentar mais tarde que Ban Ki-moon nada
fez para impedir que isso acontecesse.
Outra consideração que se faz necessária é que a guerra contra a Líbia
revelou de forma clamorosa algo que já vinha se tornando claro desde o
colapso da União Soviética, ou seja, a falência da esquerda tradicional
que se mostrou incapaz de compreender – provavelmente porque ainda está
mergulhada em problemas passados de consciência – o que estava em jogo:
o processo de pilhagem tramado em Washington, Paris e Londres, a guerra
psicológica disseminada pela imprensa corporativa, os massacres e
estupros inexistentes praticados pelas forças do governo, e a ação cada
vez mais ostensiva da OTAN.
Um
dos membros mais proeminentes da esquerda espanhola, o ensaísta Santiago
Alba Rico, chegou a chamar a atenção do presidente da Venezuela, Hugo
Chávez, por seu apoio a Kadhafi e a confessar a sua decepção com essa
atitude. As conclusões emitidas por organizações de direitos humanos
desmentindo os massacres perpetrados pelas forças do governo e os
inúmeros crimes que vieram a ser cometidos posteriormente pelos
rebeldes, inclusive o mais recente genocídio dos trabalhadores negros da
África Subsaariana residentes na Líbia, deveriam tê-lo levado a rever
essa opinião, especialmente quando se sabe que em uma guerra é muito
difícil respeitar os direitos humanos.
Com
raras exceções, sobretudo na América Latina e apenas em setores
isolados, mas nunca no seio dos partidos institucionais, a
esquerda falhou miseravelmente
ao não denunciar a agressão praticada contra um sofrido país da África,
um continente praguejado durante séculos por toda a sorte de
colonialismos, invasões, pilhagens, cruzadas, processos de escravidão,
etc.
Ao
se ater a uma falsa questão de direitos humanos – levantada por países
que jamais se preocuparam em toda a sua história com a manutenção da
democracia na África, América Latina, Ásia, Europa ou Oceania – os
autoproclamados humanistas da esquerda perderam uma oportunidade para
levantar bandeiras que possuem hoje uma dimensão planetária, como as
intervenções militares americanas que vêm progressivamente destruindo
vários países no mundo.
Deixaram ao largo uma questão vital no mundo atual: o retorno do
colonialismo e o seu braço armado mais sinistro, a OTAN. Falharam também
em não perceber que ações supostamente humanitárias, como a que está em
curso na Líbia, são na verdade a expressão de uma crise ainda mais
ampla, a falência do capitalismo neoliberal que – depois de ter se
tornado a expressão das grandes corporações e do sistema bancário
internacional – se volta agora para as fontes naturais de riqueza de
países periféricos pelo modo mais iníquo: a pilhagem do petróleo, da
água e das grandes extensões de terra onde serão plantadas sementes
transgênicas que degradam o solo, produzidas por multinacionais do
agronegócio como a Monsanto, a Syngenta e outras.
Preocupada com o politicamente correto, a esquerda pós-estalinista
parece mais voltada para sua própria autocrítica e em purgar crises de
consciência enraizadas na antiga complacência diante dos massacres
executados pelo Pai dos Povos nos
gulags soviéticos e na Hungria, e de seus sucessores na
Tchecolosváquia e na Polônia.
No
entanto, outras lições ainda podem ser extraídas da guerra contra a
Líbia, também chamada por alguns de guerra
Total, em razão do nome da
companhia petrolífera francesa que deverá se encarregar da pilhagem do
petróleo líbio, ou de guerra Air
France, por sua opção preferencial pela via aérea.
O
processo, que parece carregar objetivos tão racionais como a nobre
missão de proteger vidas e propósitos tão inconfessados como o desejo de
se apossar das riquezas do país, tem como ponta de lança de sua ação os
jihadistas da Al Qaeda, que
durante tanto tempo foram demonizados pelos Estados Unidos como
terroristas inimigos dos valores da civilização ocidental, além de
outros grupos que apresentam um caráter fortemente monarquista e
racista.
Concebida como uma missão para proteger vidas, a guerra empreendida pela
OTAN já contabiliza até agora mais de 50 mil mortos, cifra que ainda não
arrola as possíveis vítimas dos contínuos bombardeios em curso no
momento contra os bastiões remanescentes de Kadhafi. Entre todas essas
vítimas, o espectro mais sinistro parece ser o elevado número de negros
da África Subsaariana (Chade, Sudão, Costa do Marfim, etc.), tema que já
foi objeto de discussão em reunião da União Africana, que negou o
reconhecimento ao governo títere que está em vias de se instalar.
Para
nós, povos da América Latina que integram o grupo de países emergentes,
fica um alerta sobre os reais objetivos da Organização do Tratado do
Atlântico Norte. Com sua natureza política supostamente avançada,
multinacional e sem fronteiras, esta organização é hoje a expressão de
um novo e redivivo colonialismo, do qual a Europa nunca se libertou
verdadeiramente e ao qual os Estados Unidos – como legítimo herdeiro da
decadente Inglaterra – aderiram com fervor.
Sua
bandeira de defesa dos valores humanitários e de preservação dos
recursos naturais do nosso planeta é apenas um jogo de cena de uma
civilização que já esgotou os seus próprios meios de sobrevivência e –
como um vampiro – busca se valer da energia alheia. Tendo sido até o
momento bem-sucedida em sua empreitada, é muito provável que a Aliança
Militar Atlântica continue em seu propósito expansionista e se estenda
em futuro próximo até a Síria e os limites da Ásia Central, no Irã.
Para
Kadhafi, um personagem contraditório que vigiu na cena mundial por mais
de 40 anos, ficarão algumas amargas lições que também podem ser
aprendidas por outros que não viveram uma situação semelhante.
Se
encontrar uma pausa no tormentoso processo de resistência que oferece
com seus partidários à destruidora tecnologia hi-tech de seus inimigos,
poderá refletir sobre algumas considerações emitidas por personagens
históricos que experimentaram igualmente duras relações com seus
algozes.
Já o
nosso Virgulino Lampião, um cabra astuto acostumado às emboscadas de
seus inimigos, teria um outro comentário a fazer:
– Quem perdoa o inimigo, na mão lhe cai!
Quem
olha para o futuro não deve esquecer as lições do passado.
Sérvulo Siqueira
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