Lola Montés
Duas décadas após ter sido remontado – e mutilado – pelos produtores, Lola Montés deve ser visto como o encontro do cinema moderno com as possibilidades integrais do espetáculo fílmico. O cinema americano – com seus grandes diretores e astros – ainda vivia os últimos dias de fausto e opulência. O moderno cinema – independente e nacional – ainda se encontrava nos suplementos literários e nos cineclubes – como no Brasil, por exemplo – ou nas revistas de cinema – como na França, com a nouvelle vague dos Cahiers du Cinéma – ou nas universidades – Alemanha e Polônia. Lola Montés foi concebido como uma produção que iria eclipsar as superproduções francesas e européias e responderia à arte e técnica do cinema americano com o refinamento que sempre existiu num setor do cinema da França. A Gamma Film, a Florida Film, de Paris, e a Union Film, de Munich. ao escolherem Max Ophuls como diretor do projeto – um deliberado cultor deste refinamento – amparando-o numa grande campanha publicitária, acreditavam estar dando o passo certo. O sucesso, no entanto, transformou-se em escândalo. Com o fracasso de público, a obra foi remontada, suprimindo-se as seqüências que os produtores acreditavam serem supérfluas e desnecessárias. Deve-se ao produtor Pierre Braunberger a recuperação dos direitos e o lançamento da cópia integral em exibição comercial, em 1968. Com o relançamento do filme, ocorreu então a revelação de que – além da reconstituição da vida romanceada de uma bailarina de flamenco e da demonstração do estilo barroco e elegante de Ophuls – o filme pode ser visto como uma devastadora crítica da máquina publicitária, que transforma o homem em fetiche e produto de consumo. A Europa da primeira metade do século XIX, palco das agitações sociais da Revolução de 1848, da Baviera e da Comuna de Paris ainda estava muito longe do complexo tecnológico dos meios de comunicação de massa de hoje e portanto a decadência de Lola Montés só poderia ter um cenário: o circo, uma arte arruinada do espetáculo. No picadeiro do circo Mamouth – que se converte em uma representação dentro da representação – a narrativa de Ophuls reconstitui – com seu acento mais agudo – a vida aventurosa da célebre cortesã e instaura a atualidade do seu discurso. Ao invadir os bastidores da representação, com o registro do seu lado simulado e grotesco, o filme ao mesmo tempo contesta e exalta o espetáculo: ao desvendá-lo, disseca – de forma às vezes até exageradamente naturalista – a terrível manipulação de Lola, desgastada física e psicologicamente e a suntuosa simulação de sua vitalidade. Ao operar uma representação dentro da representação, o autor não poderia evitar um distanciamento do espectador. No entanto, é essa mesma representação que possibilita um universo mágico e autônomo da obra: é na recriação do imaginário e do passado de Lola (Martine Carol) que Max Ophuls – com seu gosto pelos aspectos decorativos e sua exuberância nas evocações românticas – alcança o brilho e a precisão de sua narrativa. Dessa forma, o autor devolveu ao cinema francês – certamente não na direção desejada pelos produtores – a possibilidade de fazer do espetáculo – para além de suas características de ilusionismo e entretenimento – uma crítica do sistema que o gerou. Esta tentativa séria da renovação não foi entretanto compreendida à época do lançamento do filme em 1955. Nem mesmo uma "carta aberta" publicada no Le Figaro em 5 de janeiro de 56 e assinada por sete famosos diretores – Jean Cocteau, Roberto Rossellini e Jacques Tati entre outros – pôde atenuar o fracasso de público que se seguiu. Seu teor, no entanto, permanece como uma defesa do cinema de qualidade e ainda hoje conserva a força dos seus argumentos: – "Achamos que Lola Montés é antes de tudo um ato de respeito ao público tantas vezes maltratado por espetáculos de nível tão baixo, que chegam a alterar o seu gosto e a sua sensibilidade".
Sérvulo Siqueira
Matéria publicada no jornal O Globo em 2 de novembro de 1977 |