5 de setembro de 2009
Luis Buñuel
é uma das mais ricas e complexas personalidades da história do cinema.
Sua vasta obra, que se estende por quase cinco décadas, começa com Un
chien andalou e se encerra em Cet obscur objet du désir numa
atmosfera fantástica e ao mesmo tempo rigorosamente lógica.
Situações de
grande dramaticidade são narradas em um estilo direto que expõe
personagens no limite de tensões psíquicas, causadas por opressões
interiores especialmente de origem sexual. O rico universo de seus
filmes já foi analisado sob os mais diferentes ângulos por artistas e
pensadores como Octavio Paz, Glauber Rocha e Paul Schrader.
Em um ensaio
intitulado O cinema filosófico de Buñuel, o ensaísta mexicano
Octavio Paz escrevia:
Embora
todas as artes, sem excluir as mais abstratas, tenham por fim último e
geral a expressão e recriação do homem e seus conflitos, cada uma delas
possui meios e instrumentos particulares de encantamento e assim
constitui um domínio próprio. Uma coisa é a música, outra é a poesia,
outra o cinema. Mas às vezes um artista consegue ultrapassar os limites
de sua arte; defrontamos então com uma obra que encontra os seus
equivalentes mais além de seu mundo. Alguns dos filmes de Luis Buñuel –
L’âge d’or/A Idade de Ouro, Los Olvidados – sem deixar de ser cinema nos
aproximam de outras comarcas do espírito: certas gravuras de Goya, algum
poema de Quevedo ou Peret, uma passagem de Sade, um esperpento de
Valle-Inclán, uma página de Gómez de la Serna... Estes filmes podem ser
apreciados e julgados como cinema e também como algo pertencente ao
universo mais amplo e livre dessas obras, preciosas entre todas, que têm
por objeto tanto revelar-nos a realidade humana como mostrar-nos uma via
para ultrapassá-la. Apesar dos obstáculos que o mundo atual opõe a
semelhantes empresas, a tentativa de Buñuel se desenvolve sob o duplo
arco da beleza e da rebeldia.¹
Na mesma
linha, o roteirista e cineasta norte-americano Paul Schrader considerava
o universo de Buñuel, com seus personagens no extremo entre a mais
completa liberação dos instintos e a repressão exterior, como um
equivalente cinematográfico à negação absoluta e radical do Marquês de
Sade.
O cineasta
brasileiro Glauber Rocha, que num momento de grande franqueza e
sinceridade afirmou que seria capaz de ir de joelhos até Buñuel somente
para encontrá-lo, confessou assim a sua admiração pelo autor que talvez
mais deva tê-lo influenciado:
– A
história do cinema situa Buñuel como um autor e será ele um dos poucos
cineastas que, no futuro, terão citação destacada entre os pensadores de
nossa época. Um pensamento, quase um sistema que, não tendo sido
racionalmente criado, deixa aos críticos um tema fecundo, de onde se
pode extrair uma ética-estética. Raros, mesmo entre os autores
cinematográficos de hoje, os que podem ser considerados, além de poetas,
pensadores.
Visto no
conjunto da obra do diretor espanhol como um trabalho de transição entre
as fases mexicana e francesa, o filme La fièvre monte a El Pao/Os
Ambiciosos foi realizado em 1959 com produção de Serge Silberman,
fotografia de Gabriel Figueroa, atores franceses (Gérard Philipe e Jean
Servais, entre outros) e mexicanos (Maria Felix), a partir de uma novela
de Henri Castillou roteirizada por Buñuel com a colaboração habitual de
seu parceiro Luis Alcoriza.
Decorridos
50 anos da realização do filme, quais são as ilações que se poderia
extrair desta obra tão emblemática dos nossos tormentos e contradições?
Na trama psicológica e política que envolve a narrativa, emergem os
personagens da voluptuosa Inés – interpretada pela atriz mexicana Maria
Felix – e do ambicioso Ramón Vázquez – representado pelo francês Gérard
Philipe – duas estrelas do cinema da época.
A história
passa-se em Ojeda, uma luxuriante ilha tropical do Oceano Atlântico de
oito mil km² colonizada por espanhóis e situada a duas horas de avião do
continente americano. Produtora de coco, banana e pescado, a ilha é
também o cenário de um palácio e um monastério, construídos no século
16, e de uma penitenciária que abriga um grande número de prisioneiros
comuns e políticos que se opõem ao regime ditatorial do presidente
Carlos Barreiro. A trama começa num dia de festa nacional em que o
regime comemora o 25º aniversário da Constituição do país.
Em seu
estilo direto e objetivo, Buñuel coloca desde o início o conflito que
irá permear todo o filme: após ser inadvertidamente flagrada por Ramón
no escritório do marido beijando o coronel Olivares, um de seus
parceiros sexuais, Inés aplaca os temores do amante sobre uma possível
inconfidência e se refere a Ramón Vázquez como um idealista, alguém que
acredita na honra. Logo em seguida, enquanto a miserável população
celebra a data nacional – em meio à distribuição de comida e faixas com
dizeres como Carlos Barreiro, Salvador da Pátria e Honra e
Liberdade – Vázquez entra novamente na sala do diretor do presídio,
Mariano Vargas, no momento em que Inés é esbofeteada pelo marido depois
da descoberta de um novo indício de infidelidade. Durante a solenidade,
após entoar loas ao ditador e proclamar que seu gênio havia restituído a
paz, a honra e a liberdade ao país, o diretor da penitenciária é morto
por um membro de uma organização libertária da região.
Com a morte
de Vargas, Vázquez – filho natural de imigrantes franceses que não pôde
concluir o curso universitário por falta de recursos – aspira a uma
posição melhor do que a de simples secretário do diretor da
penitenciária. Enquanto manuseia uma pistola, conta que preparou um
relatório sobre como melhorar a situação da ilha mas hesita em enviá-lo
porque não acredita na sua eficácia. Impressionada pela sinceridade e
idealismo do amante, Inés revela que pode entregar o documento às
autoridades já que sua família tem contatos muito influentes no país. No
mesmo momento, chega alguém informando que o assassino de Vargas já foi
localizado e encontra-se cercado por seus perseguidores. Ramón Vazquez
diz então ao informante que o acompanhará para evitar que maltratem o
foragido.
Enquanto as
autoridades policiais iniciam a caçada ao militante, Inés aconselha
Ramon a tirar proveito pessoal da situação. Respondendo ao amante, que
alega seu constrangimento com a situação que vive, ela recomenda:
– Para
defender seus ideais, aspire a um posto superior. Mas esqueça seus
escrúpulos ou fracassará. Lembre-se sempre do seu objetivo mas use as
mesmas armas do seu adversário.
No caso, o
adversário é o novo diretor da penitenciária, o policial corrupto e
torturador Alejandro Gual, que também aspira aos favores sexuais de
Inés. Gual – interpretado pelo ator francês Jean Servais – não parece
apreciar os novos regulamentos do diretor interino Vázquez, que permite
aos detentos algumas pausas durante o estafante trabalho, e considera
que os prisioneiros “enquanto descansam, pensam, falam e planejam
fugas”. Para combatê-lo, Ramón Vásquez ganha então a confiança dos
presos políticos, entre eles o seu antigo professor Cárdenas. Este lhe
informa acerca de uma iminente rebelião dos prisioneiros comuns, a quem
Vázquez se propõe defender em seus direitos humanos, como a abolição das
correntes. Em contraste com a dura posição de Gual, Ramón conversa com
seu velho professor, um respeitado diretor de uma associação de defesa
dos direitos civis e conta-lhe que sua família está em segurança, o que
imediatamente suaviza os rancores de Cárdenas em relação ao aluno que se
uniu aos carcereiros.
Inés sugere
que Vázquez estimule a rebelião e ao mesmo tempo concebe um plano para
afastar Gual do local durante o movimento, o que dará ao amante Vázquez
a oportunidade de assumir o comando das operações e esmagar a
resistência, tirando então um claro partido da inépcia do oponente.
Para
executar seu plano, Inés seduz Gual e leva-o à capital, El Pao, enquanto
a revolta explode na penitenciária. Acusado de incompetência e
conivência com o motim dos presos, Gual é detido e executado enquanto
Ramón Vázquez obtém o apoio dos presos políticos e controla a sedição.
Envolvido numa complexa trama, Vázquez é colocado no dilema de escolher
entre a amante e o prosseguimento da carreira. Como condição para ser
nomeado diretor da penitenciária, precisa convencer Inés a confessar
haver participado ao lado de Gual de uma conspiração liderada pelo
vice-presidente, irmão do ditador Barreiro, que se transformaria no
estopim da rebelião dos presos.
Ao perceber
que Ramón está cada vez mais enredado na trama, Inés propõe uma fuga
conjunta para outro país. Vázquez recusa mas convence a amante a assinar
uma declaração na qual Inés reconhece estar envolvida na conspiração.
Finalmente, temendo ser denunciado pela amante, ordena aos guardas que
impeçam sua fuga. Após a morte de Inés, Ramón Vázquez, num derradeiro e
desesperado gesto para recuperar a coerência e a lucidez perdidas,
recusa-se a cumprir as ordens do ministro do Interior do governo
fascista. A narração final do filme comenta que “por seu ideal, Vázquez
havia sacrificado tudo que odiava e tudo que admirava e amava. Mas ele
queria ir mais longe...”. Seu fim não poderia ser outro senão a solidão
ou a morte.
Quem é então
esse estranho e fascinante Ramón Vázquez? Dele sabe-se apenas que não
concluiu o curso superior por falta de recursos, tornou-se funcionário
do ministério do Interior e chegou à posição de secretário do diretor da
maior penitenciária do país, onde 2.000 detentos – 1.400 presos comuns e
600 prisioneiros políticos – trabalham em regime de semiescravidão.
Aparentemente, seu comportamento em nada o distingue dos outros
funcionários do aparelho carcerário. Nos relatórios que produz e envia
às autoridades do ministério, propõe a melhoria das condições de vida
dos presos políticos. Sua posição – conquanto não pareça questionar a
natureza brutalmente desumana do sistema repressivo – soa aos seus
superiores como mais humana e aceitável. Vázquez coloca-se assim em
relação às esferas do poder como uma alternativa viável e inofensiva. Ao
mesmo tempo, sua conduta – embora intrinsecamente ambígua – se mostra
como a representação do homem idealista, fiel à honra e aos mais
elevados princípios. Poucos perguntam porque estaria um ser tão
escrupuloso atuando como um agente de um sistema tão opressivo e, ainda,
como conseguiria semelhante criatura ganhar a irrestrita confiança de
seus superiores, que agem como brutais verdugos.
À medida em
que ascende na escala do aparato policial, Ramón Vázquez passa a se
identificar cada vez mais com aqueles de quem acredita discordar e isto
a tal ponto que, finalmente, ousa executar com fria lógica ações de que
nem mesmo os seus mais brutais superiores seriam capazes. Sua ambição de
poder – embora à primeira vista pareça movida por ideais de dignidade e
nobreza – se mostra pouco a pouco como a exacerbação de uma afirmação
individualista de força e desejo de superioridade sobre os demais. Ao
perceber que pode utilizar sua argumentação de caráter humanista e
modernizador como um meio de persuasão – assim como ocorre em relação à
amante Inés – Ramón Vázquez passa a crer na sua própria superioridade
quando na verdade o que ocorre é que sua pretensa mensagem reformadora o
diferencia apenas ligeiramente dos demais.
Teria essa
postura um caráter verdadeiramente mais humano e avançado? Vê-se que sua
compulsão não o impede de envolver o velho mestre numa sórdida
conspiração, que termina com a morte do pobre professor Cárdenas.
Finalmente, o apego ao poder e sua vaidade pessoal ao se comprazer como
novo diretor da penitenciária não o impedem de sacrificar Inés, sua
mentora e aparentemente a única pessoa a quem realmente amou. Ao se
negar a cumprir as ordens superiores para que os prisioneiros políticos
voltem a usar correntes, Ramón Vázquez talvez esteja dizendo que não lhe
resta outra saída a não ser tornar-se herói de si mesmo.
O que teria
levado Ramón Vázquez a percorrer um tão tortuoso caminho? Certamente,
situações de extrema repressão e discriminação vividas quando ainda
jovem, falta de recursos econômicos, impossibilidade de concluir o curso
superior, posições funcionais subalternas, etc. Não podendo vencer
obstáculos tão poderosos, habitando um país em que a população vive de
forma miserável e submetida, Ramón decide então unir-se a seus algozes e
buscar uma saída individual dentro do aparelho que o sufoca.
Para
justificar a escolha de um caminho no seio do próprio sistema que lhe
nega as oportunidades verdadeiras, Vázquez elabora o arquétipo do
funcionário idealista e imbuído de bons princípios, com o qual espera
não somente convencer seus pares como a si mesmo. Sua conclusão final de
que não é possível mudar o sistema por meio de uma simples ação
individual não implica no reconhecimento da pequenez de seu ideal
mesquinho mas termina por conduzi-lo à afirmação paroxística de seu
individualismo extremado.
Por outro
lado, o contexto político em que se dá essa trajetória política tão
vertiginosa e autodestrutiva contém muitos pontos semelhantes com fatos
ocorridos recentemente em uma pequena república da América Central. Num
domingo em que deveria ocorrer uma consulta popular sobre a
possibilidade de uma nova constituição, um grupo de militares sequestrou
o presidente da República e o levou a um país vizinho. Entre as muitas
frases que retratam a América Latina e sua lutas e tragédias – Pobre
do México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos (Lázaro
Cárdenas); El pan americanismo es el pan... que los americanos comem
(Haya de la Torre) – uma está certamente entre as mais citadas: Sabe
por que não há golpes de Estado nos Estados Unidos? Porque nos Estados
Unidos não há embaixada americana!
Imediatamente após o golpe em Honduras, um país que já foi chamado de
“porta-aviões dos Estados Unidos” e que serviu de base americana para a
deposição do presidente da Guatemala Jacobo Arbenz, em 1954, ataques
contra Cuba depois de 1959 e operações de sabotagem do governo da
Nicarágua executadas pelos contras a partir de 1979, todo o mundo se
perguntou qual teria sido a participação da base militar ianque de
Palmerola no episódio. Ao mesmo tempo, se questiona como isso teria sido
possível pouco depois da posse do novo presidente dos Estados Unidos,
Barack Obama. Eleito sob o lema da mudança, o novo governante americano
havia prometido desde a campanha eleitoral mudar a imagem de seu país e
estabelecer relações saudáveis e construtivas com a América Latina.
Por algumas
horas, os subservientes meios de comunicação do continente omitiram
qualquer comentário sobre o fato à espera de uma palavra dos senhores da
Casa Branca. Por fim, o Departamento de Estado se pronunciou e até mesmo
o presidente americano emitiu um comunicado condenando o acontecimento
embora não mencionando explicitamente a expressão golpe de Estado.
Passados mais de dois meses do golpe fascista, ainda espera-se uma firme
posição de Obama, primeiro negro a ocupar a Casa Branca, contra esta
flagrante violação das Cartas Constitucionais de todos os países do
continente.
Produto do
melting pot americano, filho de pai queniano e mãe anglo-saxã,
nascido no Havaí e criado na Indonésia, Barack Hussein Obama chegou ao
poder prometendo mudanças, como sucessor de um dos mais impopulares
presidentes de toda a história de seu país. Hoje, decorridos mais de
sete meses de sua posse ainda se aguardam claras demonstrações de
coerência do presidente em relação às promessas que fez ao longo do
caminho para chegar à Casa Branca. Tantas circunstâncias têm cercado o
seu ainda breve período de mandato que já se pergunta como foi possível
o surgimento de uma carreira tão meteórica num quadro institucional
estratificado como o dos Estados Unidos, composto por apenas dois
grandes partidos.
Nesse curto
período, seu governo já aumentou o orçamento do Pentágono, intensificou
as guerras no Paquistão e no Afeganistão, está instalando sete bases na
Colômbia, distribuiu centenas de bilhões de dólares para os banqueiros
causadores da grande crise econômica em que seu país está mergulhado,
reluta em assumir uma clara postura diante do golpe fascista em Honduras
onde militares americanos estão claramente envolvidos, demonstra
fraqueza diante do lobby judaico de Washington e das políticas
belicistas e expansionistas de Israel e ainda tem assumido uma postura
militarista que cada vez mais isola os Estados Unidos e o antagoniza
diante da China, da Rússia e de outros países emergentes. Ao mesmo
tempo, sua eleição – consumada sob anúncios de uma retirada das tropas
no Iraque que ainda não se concretizou – parece ter servido aos
neoconservadores que aparentemente combatia, já que aplacou ao menos
momentaneamente a ira dos pacifistas americanos que ainda esperam por
medidas efetivas que levem ao cumprimento de sua promessa.
Quem é então
este híbrido personagem, originário das classes menos favorecidas da
afluente sociedade americana e tão dócil aos interesses dos poderosos?
Dele sabemos que, filho mãe americana branca e de pai queniano negro,
ambos funcionários da Agência Central de Inteligência (CIA), foi
concebido e criado nos laboratórios de espionagem e contraespionagem
ianques. Enquanto seu pai lutava para derrubar Kwame Nkrumah, um dos
grandes líderes da África contemporânea, sua mãe participava da
conspiração que levou ao sangrento golpe que depôs o presidente Sukarno
na Indonésia. Na condição de presidente da mais rica nação do planeta,
Obama se comporta como um equilibrista e verdadeiro hermafrodita
político e acena à população menos assistida do seu país com amplos
programas que ainda estão longe de se tornarem realidade, enquanto
concede imensos recursos do Tesouro para salvar instituições financeiras
parasitas em bancarrota.
Incapaz de
promover as mudanças que pregou, sua popularidade começa a despencar e
muitos já pensam que seu governo caminhará cada vez mais para um estilo
próximo ao governo de Bill Clinton, o que certamente aumentará a
influência de Hillary Clinton, sua adversária nas eleições primárias do
Partido Democrata e atual secretária de Estado.
À medida que
declina o apoio popular, sua administração se torna cada vez mais
parecida com a anterior e já não se observa mais o desejo de cumprir o
compromisso assumido no sentido de respeitar os direitos humanos e banir
as torturas, investigar as atividades altamente ilegais do Estado
americano amplamente desenvolvidas durante o governo anterior como as
contratações de mercenários e o apoio financeiro aos grupos terroristas
destinados a desestabilizar países não subservientes como o Irã, a
Bolívia e a Venezuela, sem mencionar Cuba, que sofre um impiedoso
bloqueio econômico há quase meio século. Sua política de dois pesos e
duas medidas em relação ao governo fascista de Honduras – instalado ao
arrepio da lei pelos antigos aliados nativos na luta contra os
sandinistas e a Revolução Cubana – também já começa a ser contestada
dentro e fora dos Estados Unidos no momento em que agências econômicas
americanas e o Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciam a concessão
de créditos aos golpistas. A docilidade do governo de Obama contrasta
então com sua dureza em relação aos grupos de ativistas americanos
contra a guerra, caracterizada pela aplicação de penas muito severas,
além do controle cada vez mais acentuado da Internet.
Assim,
apóstolo da mudança mas conservador na prática, libertário em palavras e
controlador do sistema, Obama é na verdade a epítome da contradição e do
imobilismo, um perfeito medalhão segundo a genial concepção de Machado
de Assis, que aspira defender os explorados sem desagradar os
exploradores e nesse sentido se assemelha a Ramón Vázquez, o fascinante
personagem criado por Luis Buñuel em 1959.
Quais seriam
então seus reais objetivos? O simples exercício do poder, o poder pelo
poder e o prazer de manipular as pessoas para atingir seus objetivos
meramente individuais? Ou teria Barack Obama o desejo de mudar o mundo
por vias que ainda não nos parecem tão claras, em uma espécie de
maquiavelismo à outrance?
O que pode
se dizer é que até o momento seu estilo tem se caracterizado por uma
repetição do mesmo – ou como se dizia, plus ça change plus c’est la
même chose – e a única indagação que se pode fazer é o que vai
resultar de um caminho tão intrincado.
Sabemos que
a trajetória de Ramón Vázques chega ao fim quando se recusa a cumprir
uma ordem de seus superiores para manter as correntes dos prisioneiros
políticos. O que acontecerá com Obama? Teria o presidente dos EUA
condições de romper as rígidas estruturas de poder de seu país e
desafiar o complexo industrial-militar, o sistema financeiro de Wall
Street, o lobby sionista, os interesses corporativos e
eleitoreiros para atender a um desejo da sociedade americana e cumprir a
sua própria proposta de mudança? Ainda na primeira metade do século passado, Elie Faure dizia em sua História da Arte que havíamos chegado “ao tempo dos homens duplos: não é mais necessário um espelho para se olhar a si mesmo”. Na verdade, a vida dos homens e suas fabulações humanas estão cheias de exemplos semelhantes a Ramón Vázquez e a Barack Obama, seres humanos e personagens fictícios que sacrificam tudo por seus ideais ou que, como aconselhava a passional Inés, “para defender seus objetivos aspiram a um posto superior e usam sempre as armas do adversário”.
1 Tradução de Sebastião Uchoa Leite
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