A Volta do Filho Pródigo

 

Direção e roteiro: Ipojuca Pontes

Fotografia: Roland Henze

Cenografia: Olga Resende

Música: Marcus Vinícius

Montagem: Manoel Oliveira

Elenco: Helber Rangel, Dilma Loes, Teresa Rachel, Marlene, Dinorah Brillanti, B. de Paiva, Jota Diniz, Jaime Barcelos e Carlos Gregório

35 mm. Cor 1979

 

VIAGEM DA RETÓRICA À INVEROSSIMILHANÇA

 

Um pouco à maneira de A Grande Cidade, de Carlos Diegues (1966), 4 Volta do Filho Pródigo, de Ipojuca Pontes, retoma o tema da nordestinidade na perspectiva do velho policial de dimensão social do cinema americano, para comentar a marginalidade do migrante nordestino no Brasil de hoje. Tendo como referência uma parábola bíblica, o diretor escreveu um roteiro, que contou com a colaboração do jornalista Zevy Ghivelder, eliminando o final feliz do relato cristão e o transformando em uma tragédia em que, ao invés do filho retornar ao seio materno, por ele termina sendo devorado. Na representação simbólica da mãe enlouquecida, o filme procura caracterizar o drama nordestino onde a miséria e o misticismo tragam os seus filhos.

As intenções do argumento seriam as melhores se não tivessem se perdido num roteiro que apela  para as circunstâncias episódicas, privilegiando o aspecto mais exterior da narrativa e seus planos mortos, as corridas de carro e os diálogos supérfluos, que servem de introdução ao desenlace que o script prepara. Esta é a razão porque a mise-en-scène se transforma numa mise-en-valeur, a encenação — ou, mais propriamente, o universo dramático que desvenda os elementos da realidade — se reduz a uma valoração de pontos de vista já estabelecidos, numa estrutura fechada que nada acrescenta ao conhecimento que temos do fenômeno social da migração nordestina. Resta o final, cuja necessidade de impacto dramático faz com que o diretor o condicione a uma montagem expressionista e  que ocupa um pequeno tempo na narrativa.

 A Parábola

Utilizado publicitariamente como um dos pontos de divulgação do filme, já que foi premiado num concurso do INC - EMBRAFILME - o roteiro de A Volta do Filho Pródigo, escrito a partir de uma idéia do próprio diretor, estabelece três núcleos dramáticos organizados em torno de unidades fundamentais de locação: a grande cidade do Rio de Janeiro com os locais em que o personagem de Antonio Maria se move; a espinha dorsal da estrada Rio-Bahia com seus atalhos, bares e motéis de beira; e a pequena cidade do interior de Sergipe e seu universo povoado de repressão e mesquinharia. Enquanto no primeiro segmento, Antonio Maria tem que enfrentar a dura realidade da falta de emprego e de oportunidades, vagando à procura de trabalho (a empresa que oferece um lugar de motorista), em busca de ajuda (o padrinho que responde com evasivas) ou o desejo de amor e ódio (a ex-amante de quem alugou um quarto), os outros segmentos lhe proporcionam a fuga e o reencontro com a terra deixada. Na estrada, a volta de Antonio Maria se entrecruza com a retirada, também louca e desesperada, de outros marginais nordestinos e encontra o retorno melancólico de Maria de Jesus, derrotada em seus sonhos de viver na cidade grande. O último segmento consuma o desfecho da trajetória do personagem e realiza, em sentido inverso, a parábola da tradição bíblica

Na unidade de ação rodada na grande cidade, o tratamento dado ao roteiro tende para um discurso aproximado ao cinema neo-realista, com ênfase na incapacidade de adaptação do personagem ao competitivo mundo capitalista e na sua falta de qualificações para um trabalho de melhor nível, situações para as quais o filme procura estabelecer, de forma melodramática, uma identificação do espectador com o protagonista. O componente de empatia é buscado no sentido de equacionar um código comum entre diretor e público e leva a um discurso ideológico sobre a falta de perspectivas de milhões de brasileiros e a impossibilidade de modificação desta situação, desenvolvido na narrativa do filme. Antonio Maria é um indivíduo isolado na metrópole, sem a mínima solidariedade de seus conterrâneos e amigos e a quem falta também a consciência social e política de sua situação, e nesse quadro pode-se considerar que seu destino já se encontra previamente traçado: seu caminho é o dos marginais do sistema. Assim o círculo narrativo do filme, ao mesmo tempo em que a patologia social que descreve, se fecha em direção a uma alucinada fuga rumo ao passado.

Neste ponto, Ipojuca Pontes abandona o estilo neo-realista a que se entregou no começo, o acompanhamento quase peripatético do malsinado personagem, o esboço superficial de tipos do cotidiano (veja-se o rascunho dos personagens do empregador e do nordestino em busca da maleta, apesar da presença sempre marcante de José Dumont) e a exasperação caricatural e maniqueísta da senhoria (para o qual também contribui a representação arquetípica de Tereza Rachel).

 Na Estrada

À medida em que se processa a fuga de Antonio Maria, seu destino já cristalizado de marginal termina por se confundir com o de Ceará e Vinte-e-Um, assaltantes perseguidos pela policia, que o filme caracteriza como o modelo consumado da trajetória para a qual o personagem se encaminha: a criminalidade como escape ao sufoco social. Abandonando a narrativa de ritmo lento - o que já tinha se prefigurado após o assassinato da antiga amante e senhoria - o filme incorpora os clichês do velho criminal hollywoodiano e acompanha a escapada de Antonio Maria e Maria de Jesus (uma simbologia de nomes bastante simplista), que começa como uma simples carona para depois se transformar  em cumplicidade.

Ao longo da trajetória de retorno do derrotado filho pródigo nordestino — estabelecida tanto no nível simbólico quanto em sentido concreto — aparecem as freqüentes  inverossimilhanças do roteiro. Na verdade, elas já haviam começado desde o extremamente mal representado episódio da morte de Cléa, a mesquinha senhoria e ex-amante, e prosseguem quando o personagem decide interromper a viagem diante de um desastre na estrada, o que leva ao incrível e patético instante do sepultamento do bandido Vinte-e-Um, inverossímil tanto na técnica (a cova de tão rasa jamais poderia cobrir o corpo) quanto em relação às circunstâncias do momento, um desesperado e implausível ato de honra e desagravo ao comparsa morto em meio a uma fuga desesperada. Num filme cujo discurso se propõe realista, que procura estabelecer um tom convincente na sua narrativa e cuja abrangência temática visa criar um retrato do angustiante drama do nordestino no país e sua busca por melhores condições de vida, artimanhas e forçações de barra como estas levam ao descrédito os melhores propósitos. No plano mais específico da composição dos personagens, esta incongruência se caracteriza no comportamento incoerente de Antonio Maria e nem sempre é correspondida pela interpretação (em geral de bom nível, apesar da horrível deformação imposta pela dublagem de Stepan Nercessian) de Helber Rangel.

Na dúvida entre esperar pelo conserto do carro (e demorar um pouco mais) ou pegar carona num caminhão que sai de madrugada, Antonio Maria prefere o meio mais rápido e segue com um motorista que transportava em outros tempos mão-de-obra quase escrava para as fazendas de Goiás e Mato Grosso. No caminho encontra levas de lavradores em busca de trabalho, sinal que prenuncia uma outra realidade para a idílica Laranjeiras de sua infância. Em outros traços da cidade, no seu aspecto em ruínas e de abandono, no miserável bêbado e no avarento dono do botequim, a narrativa começa a deflagrar o que já havia se anunciado desde o começo: a inversão da parábola cristã onde, em vez da família acolher aqueles que dissiparam em outros lugares sua juventude e fortuna, a terra - representada miticamente na mãe enlouquecida e devoradora - termina por tragar autofagicamente os filhos que a ela retornam.

     A Inversão Invertida

Proposto como o núcleo fundamental do filme, o seu grande nó dramático, o auge do suspense sugerido pelo clima policial de sua linguagem, o sentido da inversão da parábola desejado pelo diretor só se realiza mesmo, e de forma trágica como era previsto, ao nível da limitada consciência de Antonio Maria. Seu destino já estava na verdade escrito e traçado nos milhares de paus-de-arara que como ele estão condenados a morrer ou a sobreviver à margem do sistema. No nível realista, o desfecho trágico do personagem, prefigurado em tom de suspense nos climas da narrativa, esteve sempre contido na visão de mundo fatalista de Ipojuca Pontes, o que, em última análise, elimina a margem de surpresa e impacto da história. Afinal, que perspectivas poderia ter um nordestino jogado numa selvagem metrópole sem qualquer apoio de parentes ou amigos, sem emprego, desprovido de qualquer qualificação para algum trabalho mais digno, a quem falta um maior conhecimento de sua situação social e existencial no mundo, marcado por assassinato e roubo, e alimentado pelo mito de um retorno quase uterino? Estigmatizando de tal forma sua criatura, Ipojuca Pontes apenas alimentou o desejo de envolvimento e identificação do espectador para lhe mostrar, ao final, como se pode apenas contar uma história. Que nem sempre soa convincente, curvada que está sob o peso de truques anedóticos, artifícios e sortilégios de narrativa. Para o que, convenhamos, não seria preciso tamanha retórica.

 

Sérvulo Siqueira

 

Publicada na revista Filme Cultura 35-36, em 1980