Wilson Grey

 

Nestes tempos em que antigos atores canastrões assumem – no Poder o papel de falsos mocinhos, Wilson Grey é a prova viva da sobrevivência do cinema brasileiro não colonizado e o retrato de um povo que o cinemão comercial e a ideologia estrangeira fingem não ver. Será por isso que poucas vezes Grey interpretou personagens principais num filme, embora tenha participado em quase todos como o indefectível coadjuvante que com sua astúcia consegue sair das situações mais intrincadas?

O modelo visual do homem brasileiro, hoje ainda mais empacotado através da televisão, é importado e estereotipado. Projeta-se um personagem olímpico e apolíneo, cuja função é essencialmente a de vendedor de ilusões embaladas em imagens assépticas e idéias mal intencionadas. Wilson Grey, que não é bonito nem tem o porte atlético dos galãs, que não se veste segundo o figurino dos filmes de propaganda, permaneceu ao longo de três décadas de intensa participação no cinema brasileiro como a marca de uma resistência à nossa desfiguração cultural.

Protagonista de muitas chanchadas da Atlântida, onde emprestou a sua fina e bem composta figura de malandro carioca dos velhos tempos – junto com Oscarito, Grande Otelo e José Lewgoy, entre outros – aos filmes de Carlos Manga, Watson Macedo, Lulu de Barros e José Carlos Burle, etc. WG foi praticamente redescoberto após a emergência do chamado cinema udigrudi, no final da década de 60. Curiosamente, Grey havia passado praticamente despercebido dos autores do Cinema Novo, mais interessados na composição de tipos e personagens de efeito explosivamente populista, como o camponês, o intelectual, o capitalista, o marginal ou o líder sindical. Wilson Grey, cuja cancha não se enquadra num destes protótipos da sociedade brasileira, ajudou a compor um segmento mais popularesco e de alcance público mais imediato, em que não poderiam faltar o malandro da Lapa, o bicheiro do subúrbio, o biscateiro de expedientes ou o bandido pé-de-chinelo, geralmente narrados de forma bastante esquemática, Mas como, muitas vezes, uma interpretação pode transcender as intenções do diretor, sua caracterização de tipos e personagens revela uma consciência da linguagem do cinema – uma maneira especial de falar, andar e olhar – que as nossas melhores produções passaram a reconhecer e a convocar.

Hoje, esse ator brasileiro, que fez mais “pontas” do que ninguém, pode se considerar um dos poucos do mundo que conseguiu realizar de tal maneira a fascinante simbiose do intérprete com um personagem básico e fundamental – o seu malandro de sapato de duas cores, bigode aparado com cuidado, cabelo bem penteado (às vezes com brilhantina), fala mansa e conversa envolvente – que dificilmente se poderá dizer onde termina a vida e onde começa a pura representação.

Sua adesão à este protagonista de nossa paisagem urbana é mais do que um simples procedimento técnico – que poderia ser obtido por meio do método stanislavskiano, por exemplo – mas indica a assimilação cultural do espírito de um povo, que o ator acredita estar representando em seu verdadeiro retrato do dia a dia, marginalizado e sofrido. Assim, não é certamente por acaso que Wilson Grey tenha se tornado o recordista em participações no cinema brasileiro, atuando em todos os gêneros e com os mais diferentes diretores, para compor uma expressiva trajetória da nossa tipologia nos últimos 30 anos.

Como John Wayne – a quem supera em número de filmes feitos – no faroeste, Grey representa a síntese da nossa folclórica fauna urbana, que luta pela sobrevivência sem as armas do cowboy, mas com o mínimo de astúcia que se exige de um malandro, esse personagem quase nostálgico e culturalmente rico que o sistema insiste em eliminar e que Grey recaptura em sua complexa integridade. Ao contrário do herói americano, que está sempre construindo a lei e a ordem a poder de socos e tiros, nosso protagonista é mais modesto, embora sua briga não seja mais fácil: com um tanto de esperteza e igual determinação vai lutando por reconhecimento e dignidade num espaço ocupado por vilões e falsos mocinhos, ao mesmo tempo em que tem que fugir, aqui e ali, dos lobos e leões que sempre aparecem.

 

Sérvulo Siqueira

 

Publicado na Raposa n° 3, setembro de 1981