17 de julho de 2009
Na década de
60 do século passado, o Cinema Novo brasileiro – não conseguindo
acolhida nas salas de espetáculo do país – obteve grande receptividade
nos festivais da Europa e Ásia, onde recebeu sucessivamente muitos
prêmios por mais de uma década.
Enquanto as
salas de exibição do Brasil, controladas por grandes redes – Luiz
Severiano Ribeiro, Circuito Haway, Metro, Ouro, Paris e Art Films –
fechavam os espaços para um tipo de linguagem ci-nematográfica
considerada difícil e pouco comercial, os espectadores europeus dos
festivais de Pesaro, Locarno, Karlov Vary, Biarritz, Clermont-Ferrand,
Berlim, Veneza e até mesmo Cannes se extasiavam diante de um estilo
fragmentado e inquieto, às vezes excessivamente discursivo, considerado
maladroit pela crítica francesa, mas impulsionado por uma energia
que só poderia vir de um Terceiro Mundo (um conceito muito em evidência
na época) em busca do seu próprio destino.
Tais eventos
somente começaram a surgir no Brasil em meados da década de 60 com o
Festival de Brasília (1965) e se expandiram na Jornada de Curta-Metragem
da Bahia (1972) e em Gramado (1973), criados certamente para expor a
vasta produção que começou a emergir a partir do sucesso de crítica do
Cinema Novo. Nos anos 70 e 80, outros festivais se incorporaram a essa
tendência, refletindo sempre a necessidade de abrir espaço à crescente
experimentação cinematográfica, às novas tendências emanadas das bitolas
do 16 mm e do Super-8 e à premência de encontros para discussão e
avaliação de novos caminhos, que tinham o propósito de superar o
estrangulamento imposto pelos grandes circuitos de distribuição e
exibição nacionais e estrangeiros.
Como a
produção e criação de filmes ligava-se também à própria luta pela
libertação política e econômica – já que, unindo todos os povos da
América Latina, um cordon sanitaire de ditaduras militares
impostas pelos Estados Unidos tornava a bandeira de um povo livre e de
um cinema novo o lema comum – os festivais de Viña del Mar (1967) e
Havana (1979) vieram criar um amplo mostruário das tendências que
irrompiam a partir daquele processo.
O novo
cinema latino-americano, cujos primeiros frutos já haviam começado a
brotar no início da década de 50 do século passado, encontrou finalmente
nos festivais de prestígio, nos capitais europeus e americanos e no
apoio de estatais, como a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), um
estuário onde poderia projetar a crescente expressão audiovisual de um
continente que vivia nos anos 70 um momento de grande intensidade
cultural e política.
No Brasil, a
criação da Embrafilme, estabelecida em 1969 por um decreto-lei que
expressava o desejo de controle do aparato militar que regia o país
sobre uma atividade tão importante como o cinema, proporcionou
paradoxalmente um espaço que, embora marcado por nepotismos e outros
favorecimentos, se revelou fértil em alguns momentos. No caudal que daí
aflorou, a quantidade dos filmes se tornou mais importante do que a sua
qualidade mas foi inegavelmente na década de 70 e no início dos anos 80
que o cinema brasileiro produziu importantes reflexões sobre o nosso
modo de ser por meio da obra de cineastas como Nelson Pereira dos Santos
(Como Era Gostoso o Meu Francês, Tenda dos Milagres,
Memórias do Cárcere, entre outros); Glauber Rocha (O Dragão da
Maldade Contra o Santo Guerreiro, Di Cavalcanti); Joaquim
Pedro de Andrade (Os Inconfidentes, O Homem do Pau-Brasil);
Leon Hirzsman (São Bernardo, Eles Não Usam Black-Tie),
além de O País de São Saruê de Vladimir Carvalho, Iracema
de Orlando Senna e Jorge Bodansky, A Queda de Ruy Guerra,
Pixote, A Lei do Mais Fraco de Hector Babenco, Pra Frente, Brasil
de Roberto Farias, Inocência de Walter Lima Jr., Cabra Marcado
para Morrer de Eduardo Coutinho, A Marvada Carne de André
Klotzel, entre outros. Esses filmes enfrentaram com coragem o desafio de
abordar dramaticamente a injusta e contrastante realidade social
brasileira; a nossa herança cultural e étnica com os seus elementos
indígena, negro e europeu; a complexidade de nossas expressões estéticas
mais avançadas como a literatura, as artes plásticas e a música; e o
legado do passado e seu peso histórico como elemento formador do nosso
modo de ser, buscando em muitos casos encontrar aquilo que nos seria
intrinsecamente próprio.
Por outro
lado, foi exatamente nesse período que começou a se esboçar a tendência
mais comercial do cinema brasileiro e sua clara subordinação ao modelo
dominante do cinema americano da metrópole. A vertiginosa urbanização do
Brasil, que em vinte anos se transformou em um país com 80% da sua
população vivendo nas áreas urbanas, levou predominantemente a um cinema
que se espelhou na matriz do modelo comercial bem-sucedido ao invés de
procurar uma nova linguagem para expressar a nossa realidade. Com uma
produção que embora muito diversificada – policiais, comédias,
chanchadas e suas variantes eróticas e grotescas, dramas urbanos
populares e burgueses, etc. – não se distinguia pela boa qualidade, o
cinema brasileiro chegou na década de 80 a uma média de cem filmes por
ano e foi então que – assim como havia sido instituída em 1969 por um
decreto – a Embrafilme terminou sendo extinta por outro decreto,
assinado por Fernando Collor de Melo em 1990. O desmoronamento do cinema
brasileiro mostrou como era frágil a sua estrutura e a total dependência
que tinha do apoio do Estado.
A chamada
retomada – alardeada por publicistas e críticos de plantão – nunca
chegou a recuperar o vigor do cinema brasileiro dos anos 60 e 70 apesar
da sua cada vez maior inserção no circuito internacional e da melhor
qualidade técnica, dos novos prêmios em festivais, dos diretores
filmando em Hollywood e na Europa e dos atores estrangeiros atuando em
produções nacionais nunca compensou, entretanto, a imensa marginalização
a que a maior parte da produção nacional audiovisual foi relegada. Sem o
apoio do Estado, cuja importância para o nosso cinema foi tão grande na
produção quanto na distribuição dos filmes, chegando a atingir mais de
um terço do mercado, e após o fim dos cineclubes – que alimentaram o
debate cinematográfico no passado – além de ser impedida de chegar à
televisão, a enorme produção brasileira proporcionada pelas novas
técnicas digitais acabou estancada e confinada à exibições em escolas e
comunidades.
A atual
febre dos festivais nasceu certamente do anseio de encontrar um espaço
para expor essa criatividade expressa em sons e imagens em meio a uma
turbulenta realidade. Os eventos que se seguiram ambicionavam então os
mesmos propósitos: distribuir e promover filmes; criar um espaço para o
encontro de cineastas, produtores, público e críticos; oferecer uma
oportunidade para conhecer a realidade de diferentes criadores e seus
países – nobres ideais que camuflavam eventualmente objetivos meramente
pessoais. Os cerca de 150 festivais arrolados pelo Guia Kinofórum de
festivais de cinema e vídeo para 2009 – uma pletora de acontecimentos do
mesmo gênero – poderiam ser classificados em diferentes categorias: a
primeira se relaciona aos festivais que se dedicam à exibição de filmes
que ainda não foram vistos ou que, pela sua própria natureza, se
destinam aos verdadeiros apreciadores do melhor da chamada Sétima Arte.
A segunda categoria é aquela que se serve dos filmes como negócio, onde
o festival se transforma em uma verdadeira catapulta para o seu
lançamento no mercado. Uma terceira categoria é a de festivais de
relações públicas, em que o cinema se presta à condição de veículo
de uma cidade, de um produto ou, em muitos casos, de ambições pessoais
de prestígio e poder. No caso brasileiro, a vertiginosa proliferação de
festivais ocorrida nos últimos anos dá a sensação de que a última
categoria tem prevalecido largamente sobre as outras duas. Argumentos
como a necessidade de combater o apartheid cultural têm servido
de pretexto para o fortalecimento de empreendimentos de caráter
nitidamente corporativo que, ao invés de realmente colaborar de forma
decisiva para a criação de uma verdadeira cultura do audiovisual no
Brasil, se organizam como uma associação que pretende tirar proveito do
vácuo deixado pela ausência de uma ação mais eficaz do Estado e se
prevalecem das benesses e do favoritismo escandaloso proporcionado pela
desigual aplicação dos benefícios decorrentes da Lei Rouanet de
Incentivos Culturais.
Certamente
qualquer cineasta ou realizador de vídeos concorda com a importância
deste tipo de encontro para a promoção dos seus filmes assim como o
reconhecimento que decorre das premiações, a importância das reuniões
com outras partes, os seminários e a formulação de novas propostas que
todos encerram. No entanto, quando se trata de questões de ordem
puramente econômica e financeira – como a distribuição dos filmes ou sua
venda para o mercado da televisão, por exemplo – não se pode dizer o
mesmo. Raros festivais têm a capacidade de projetar um filme como um
sucesso de bilheteria e os diretores e produtores escolhidos para fazer
parte de sua seleção podem ser considerados como os verdadeiramente
poucos felizes nesse métier. Isto não tem impedido certamente
que ano após ano o cinema brasileiro venha batendo às portas do Festival
de Cannes ou da premiação do Oscar na ânsia de – com isso – alcançar uma
radical e definitiva consagração no mercado externo. No entanto, apesar
de todo esse esforço, o único grande prêmio obtido pelo cinema
brasileiro em Cannes – a chamada Palma de Ouro – ocorreu em 1962, há
quase 50 anos, e apesar de todo o lobby realizado em Hollywood
ainda não conseguimos – à exceção do próprio Pagador de Promessas,
em 1963 – sequer ser indicados para o Prêmio de Melhor Filme Estrangeiro
do Oscar, uma categoria periférica no conjunto desta premiação.
De outra
parte, embora muitos desses certames de importância paguem aos filmes
selecionados uma taxa a título de aluguel pela sua projeção –
independente dos prêmios que porventura possam ser atribuídos à película
ou aos participantes da produção – no caso brasileiro a grande maioria
dos festivais oferece aos produtores apenas a simples exibição como
recompensa. Embora os promotores de festivais aleguem falta de recursos
para uma mínima gratificação aos produtores, a sua enorme proliferação –
em que uma cidade com uma pequena produção audiovisual como Goiânia, por
exemplo, pode chegar a realizar seis festivais em um ano, segundo o guia
do Kinofórum – faz pensar que a promoção desses eventos é, senão uma
atividade altamente rentável, ao menos bastante estimulante e
promissora.
A abundância
de mostras faz com que muitas empresas que se especializaram na promoção
desse tipo de evento não se satisfaçam em organizá-las apenas no nosso
território; ao contrário, existem hoje – ainda de acordo com o abalizado
guia Kinofórum – mais de vinte festivais de cinema brasileiro no
exterior, desde as cidades de Miami, Roma, Berlim, Roterdã, Estocolmo,
Paris e Londres, até Montreal, Toronto,Vancouver, Tóquio, Barcelona e
Istambul, além de um festival em Israel e duas mostras de cinema judeu
(porém nenhum árabe) em São Paulo. Pelo número de eventos semelhantes
que uma empresa realiza durante um ano e que pode chegar a quase uma
dezena, depreende-se – de toda essa aparentemente febril atividade – que
a organização de festivais se tornou hoje um exercício profissional. No
extremo oposto deste cenário, nota-se que outros festivais possuem um
caráter mais isolado, com características artesanais ou restritas a uma
pequena comunidade.
Em todo este
amplo espectro, que abarca praticamente quase todo o território
brasileiro e onde certamente não poderiam deixar de pontificar as
cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, com aproximadamente trinta
festivais ao ano no conjunto, há também os eventos temáticos ou
específicos: filmes musicais e de animação, festivais gays, lésbicos e
eróticos, documentários, curta-metragens e filmes curtíssimos,
ambientais e etnográficos, produções para televisão, cinema infantil,
esportes radicais e montanhismo, imagens de arquivo, o tradicional
festival do minuto, sem falar em alguns com nomes bizarros ou de sentido
vago como o FEIA (Festival do Instituto de Artes), CINEME-SE (Festival
da Experiência do Cinema) e FLÔ (Festival do Livre Olhar).
No entanto,
toda essa vasta gama de assuntos que naturalmente reflete a diversidade
e complexidade da sociedade brasileira dificilmente chega ao grande
público, que está mais atento aos dramas das novelas de televisão. O
certo é que esta panóplia de festivais não tem conseguido abrir os olhos
do espectador brasileiro para a diversidade de nossa produção ou levado
à instalação de novas salas alternativas que abram espaço para o cinema
nacional já que, após a extinção da Embrafilme, a distribuição e
exibição de filmes no país se transformou praticamente em um monopólio
das grandes empresas norte-americanas e brasileiras a serviço do cinema
estrangeiro. Confinada a um verdadeiro gueto de pequenos circuitos
alternativos, a maior parte da nossa produção audiovisual não tem outra
saída senão esperar pelos quinze minutos de brilho que os festivais lhe
oferecem.
Enquanto os
festivais crescem em número e diversidade de temas, o nosso cinema – que
deveria se alimentar dessa aparente opulência – perde ano após ano
frequência de público nas salas de exibição: desde 2005 vimos assistindo
a uma progressiva diminuição de espectadores das produções nacionais. Em
1978, quando o país tinha cerca de 120 milhões de habitantes, o cinema
brasileiro foi visto por 61 milhões de espectadores, número que
correspondia à metade da sua população. Em 2008, trinta anos depois, o
conjunto de filmes brasileiros atraiu o interesse de apenas 8,8 milhões
de espectadores – um número ridículo numa população de 190 milhões de
pessoas – o que representou uma queda de 14,5% em relação a 2007 e se
constituiu no seu pior resultado obtido desde o ano de 2002. Esses
números causam espanto e deveriam nos induzir a uma reflexão sobre o
processo que levou a essa decadência econômica e à queda da vitalidade
cultural. Inversamente, ao mesmo tempo em que diminui a frequência de
público aumenta o preço do ingresso e a renda das bilheterias, o que
reflete a tendência que praticamente percorre toda a história do nosso
cinema contemporâneo: no showbiz patropi são sempre os
distribuidores/exibidores que ganham, ficando para os produtores alguma
sobra vez por outra. Por outro lado, os generosos patrocínios permitem
que uma pequena casta de produtores/diretores ostente um elevado padrão
de vida, com carros importados e apartamentos de luxo, que se contrapõe
de forma flagrante ao pequeno número de salas de exibição e à ausência
de público espectador dos filmes que fazem, o que evidencia mais uma
faceta da enorme desigualdade que caracteriza a nossa sociedade.
Em um ensaio
considerado clássico, como quase tudo que escreveu, o crítico André
Bazin, pai espiritual da nouvelle vague e grande teórico do
neorrealismo italiano, dizia de forma irônica que os festivais de cinema
– sobretudo aqueles considerados sérios – podem ser comparados, em razão
da organização empírica de seu ritual e da necessária hierarquização que
comportam, a uma ordem monástica dedicada à vida contemplativa e
meditativa e à comunhão espiritual no amor de uma mesma verdade
transcendental: o poder catalizador da escura sala de exibição
entronizada como uma verdadeira catedral religiosa.
Vistos sob o
ângulo do intenso programa de exibições, conferências de imprensa,
seminários, grupos de trabalho, coquetéis e outros encontros fortuitos
ou previamente programados, os festivais de cinema impõem aos seus
participantes um rigor e uma disciplina que, se cumpridos fielmente
durante o curto período de mais ou menos quinze dias de um grande
evento, demandariam uma dedicação verdadeiramente monacal. Durante a sua
já longa existência – Cannes, por exemplo, foi criado em 1946 – os
festivais de cinema aperfeiçoaram uma rica e variada estrutura que
compreende a mostra competitiva e um número muito variado de seções
dedicadas às mais diversas tendências, desde as relativas aos primeiros
filmes de jovens diretores, os curta-metragens, o cinema dos países
periféricos ou emergentes, as mostras retrospectivas, as propostas
culturais mais abrangentes, até as exibições de filmes clássicos
recém-restaurados e a exposição das mais novas tecnologias mecânicas,
óticas e digitais.
Irrompendo
como um dado absolutamente inovador no audiovisual contemporâneo, as
novas tecnologias digitais – fitas magnéticas alfanuméricas, discos
rígidos de armazenamento de imagens, sofwares de edição de filmes
e vídeos em plataformas de computador (Avid, Final Cut), mídias de disco
com uma incrível capacidade de reprodução de produtos audiovisuais (DVD,
Blu-Ray) – modificaram o cenário dos festivais, tornando-os certamente
menos elitistas e ampliando o seu espectro, ao mesmo tempo em que
favoreceram o surgimento de novas produções, especialmente nos países
menos desenvolvidos onde – em razão do alto custo do cinema – elas
teriam dificuldades para se concretizar.
Nos
festivais de cinema do passado, os produtores e diretores de filmes que
aspiravam ver seus trabalhos exibidos nas mostras competitivas enviavam
as películas para o escrutínio da comissão de seleção; hoje podem
fazê-lo remetendo apenas uma simples cópia em DVD do projeto. Alguns
festivais chegam a receber mais de duas mil cópias de filmes e vídeos, o
que por certo dificulta o rigor da seleção e cria um ambiente muito
favorável para uma grande aleatoriedade na escolha dos trabalhos. O que
fazer, então, com o imenso número de filmes e vídeos que não alcançam
ser selecionados para as diversas mostras? Enquanto os festivais
europeus optam pela destruição das cópias ou – na hipótese do produtor
estar disposto a arcar com a despesa do retorno – a sua remessa por via
postal, os promotores de festivais no Brasil – na sua grande maioria
empresas que também são produtoras de filmes e vídeos, portanto
concorrentes daqueles cujos trabalhos se propõem a exibir e promover –
estabeleceram por um consenso absoluto e unânime que todos os filmes e
vídeos recebidos, mesmo quando não selecionados para exibição, não serão
devolvidos. Quase como um mantra, os regulamentos de todos os
festivais de cinema e vídeo no Brasil – nas suas mais peculiares e
bizarras variações – instituem que as cópias dos trabalhos não
selecionados ficarão permanentemente arquivadas para consultas futuras e
passam automaticamente a fazer parte do acervo do festival. Que situação
tão curiosa para um trabalho audiovisual! Fadado ao oblívio – por lhe
ter sido negada a possibilidade de uma simples exibição pública – e ao
mesmo tempo condenado a ser visto e consultado em exibições privadas, à
revelia do seu produtor e diretor! Ao limite, pode-se pensar na
esdrúxula situação em que um diretor tenha sua produção recusada em
cinco ou seis festivais e aí teremos a triste condição em que seu
trabalho permanecerá inédito mas ainda assim poderá ser visto e
consultado privadamente em cinco ou seis diferentes lugares e cidades.
Pressionados
por algum tipo de má consciência, os organizadores de festivais no
Brasil, que se agrupam em torno de uma instituição chamada Fórum
Nacional dos Organizadores de Eventos Audiovisuais Brasileiros/Fórum dos
Festivais, chegaram a propor a revisão de alguns critérios, entre eles a
devolução dos trabalhos submetidos à seleção, porém seu mais recente
comunicado – chamado de Código de Ética – parece ter esquecido esta
ideia.
Que
instrumentos dispõe então um produtor para garantir que seus direitos
sejam respeitados e a originalidade dos filmes e vídeos integralmente
preservada? Assim como no modelo político neoliberal são os eleitos que
impõem a sua vontade sobre os eleitores, aqui também são os próprios
festivais que plasmam draconianamente as suas regras sobre os
participantes. Todos aqueles que inscrevem seus trabalhos se comprometem
a aceitar regulamentos que invariavelmente estabelecem que, em caso de
perda do material audiovisual, o valor da indenização é meramente
simbólico. No entanto, todos sabemos que os danos causados por perda ou
extravio de uma obra de arte podem ser muito grandes, sobretudo quando
nomes importantes estão envolvidos na produção ou se o produtor deseja
preservar o ineditismo de suas imagens.
Como serão
os festivais brasileiros de cinema do futuro, abarrotados a cada ano por
um dilúvio – ou um tsunami – de filmes e vídeos e tendo o compromisso de
guardar todas as cópias para as futuras gerações? Quem conhece as
condições extremamente precárias da preservação de filmes no Brasil –
reduzida hoje praticamente a apenas um grande arquivo de filmes, a
Cinemateca Brasileira de São Paulo – sabe que esta possibilidade é
altamente improvável. O Código de Ética dessa associação de
festivaleiros, cheio de palavras vagas e de duplo sentido com
inconfessável propósito corporativo, não trata de uma questão de grande
relevância para os produtores e diretores de material audiovisual neste
país. Onde ficarão alojadas essas milhares de cópias de filmes e vídeos?
Quais são as garantias que esses festivais dão aos verdadeiros donos das
produções audiovisuais de que eles não serão copiados e permanecerão em
bom estado de conservação? Curiosamente, o Código de Ética também não
contempla nenhuma dessas questões, que tanta importância têm para os
produtores.
Apesar do
apoio do governo propalado pelos meios de comunicação – que em muitos
casos agem como meros órgãos de relações públicas – o cinema no Brasil
não deve ser visto como um elemento orgânico da nossa cultura – a
despeito da evidente qualidade de alguns trabalhos. Não se pode falar
verdadeiramente de um cinema brasileiro no sentido de que essa linguagem
exprima de forma intensa e profunda o imaginário do nosso povo;
certamente não da mesma maneira que nos referimos às cinematografias
russa, alemã, japonesa, italiana ou norte-americana. Pulsões muito
intensas de poetas como Mário Peixoto e Humberto Mauro permearam os mais
de 110 anos da nossa história fílmica – considerando que o cinematógrafo
chegou cedo ao Brasil pelas mãos de um imigrante italiano – mas não
conseguiram criar um estilo ou tendência dominante; foram no mais das
vezes sacrifícios fecundos ou legados apenas eventualmente retomados. A atual enxurrada de festivais é mais uma moda, um fait divers que preenche por um instante a imensa mediocridade da nossa vida cultural de hoje e cujo brilho pode se estender apenas por um final de semana prolongado, tempo que duram algumas mostras de cinema no nosso eterno gigante adormecido.
Sérvulo Siqueira |