Com o biólogo Ruschi em sua reserva florestal: um filme científico
No mesmo momento em que o biólogo Augusto Ruschi luta para manter sua reserva florestal de pesquisas em Santa Teresa, Espírito Santo, um documentário sobre sua obra revela as inúmeras dificuldades com que se defronta o filme científico no Brasil, Seu diretor, o cineasta Orlando Bonfim, aponta entre essas dificuldades "a ausência de entidades dispostas a financiar filmes sobre a fauna e a flora da região tropical, a mais rica do mundo e a falta de equipamento adequado: só existe uma câmara para este tipo de filmagem". De outra parte, Ruschi, em depoimento gravado para o filme, lamenta que no Brasil se plante o que quer, quando se quer, onde se quer, e não haja lei nenhuma lei que proteja a natureza. O Museu Melo Leilão foi fundado em Santa Teresa, em junho de 1949, por Augusto Ruschi: Foi lá que, em julho de 75, Orlando Bonfim e sua equipe começaram a filmar, entre orquidários, estufas e um pavilhão de toras de madeira, as 270 espécies de beija-flores que Augusto Ruschi estuda em sua reserva. Levando em conta as dificuldades do trabalho e o pouco conhecimento do assunto, Orlando procurou estabelecer um método de trabalho: – A melhor perspectiva era acompanhar o trabalho de Ruschi, deixar que eles nos indicasse o caminho a seguir. Colocamos, assim, o nosso, diga-mos, know-how cinematográfico, em função do olho e da experiência de cientista de Ruschi. O filme procura então um equilíbrio entre a informação cientifica - substrato da obra - e o necessário elemento visual do cinema. Parte do trabalho, depois de contratipado, será publicado no "National Geographic Magazine". Entretanto, dificuldades se colocaram desde o início das filmagens. Dificuldades com que o filme de caráter científico tem sempre esbarrado no Brasil. Conta Orlando: – Em princípio, é necessário dispor de uma grande quantidade de negativo. Os animais, no caso os beija-flores percebem o elemento estranho e se recolhem. E preciso, então, colocar a câmara filmando e esperar que eles se habituem à sua presença e se aproximem. Na cena do banho dos beija-flores, por exemplo, em uma bica de água corrente, tínhamos que filmar mudando constantemente de velocidade na câmera. E aí encaramos outro problema que tem limitado a produção do filme científico no Brasil: a falta de equipamento adequado. A única câmara especial para este tipo de filme no país e uma Mitchell 16 mm, e nós estávamos fazendo um filme em 35 mm, com um equipamento mais pesado e sem as especificações necessárias. Isto não impediu que muita coisa fosse registrada e que os resultados tenham surpreendido até o próprio Ruschi, um homem que há muito tempo está acostumado a fotografar e filmar suas experiências. Fazendo das dificuldades um meio de criatividade, o filme conseguiu, em muitos casos, conforme conta o fotógrafo Douglas Lynch, um registro surpreendente: – As estufas de plantas e os viveiros de beija-flor são, em geral, lugares fechados e com pouca luz. Deve-se usar luz artificial com cuidado porque ela provoca a fuga dos colibris, além de modificar a cor e o brilho de sua plumagem e das plantas. Seria preciso, então, utilizar apenas a luz natural, com um máximo de abertura do diafragma da câmara. O risco, no entanto, seria a redução do foco, uma vez que – dada à extrema velocidade do vôo dos beija-flores - é necessário mudar constantemente a velocidade da câmara. O resultado, entretanto, foi acima do esperado. Já, em outros casos, equipamentos suplementares
terão que ser incorporados ao material técnico, para possibilitar o
resultado desejado. Orlando Bonfim fala dos seus planos para as
futuras filmagens:
– No fim do ano, em dezembro, voltaremos para
completar o filme. Vamos documentar as reservas florestais, os
orquidários do Museu Melo Leitão, a construção de um ninho de
beija-flores e – através de um equipamento especial desenvolvido por
Augusto Ruschi – o eletrocardiograma de um colibri. Talvez pela
verificação dos seus batimentos cardíacos – que variam por minuto-
se possa compreender as razões da incrível energia de que é dotado
este pequeno pássaro. "A região tropical é a mais rica do mundo", diz
Ruschi em seu depoimento no filme "Há seis anos iniciamos estudos
aqui no museu, realizados por colegas americanos, que foram
encerrados em 1974." Ruschi conta que no momento eles preparam suas
conclusões – que serão programadas e revistas por computadores – e
"então poderemos saber a produção da nossa biomassa, o seu consumo e
a sua redução". – Por outro lado, estudamos espécies que estão
sendo exterminadas, sem que se conheça seu fator de equilíbrio
biológico na natureza, como os morcegos. Há entre eles vários tipos:
frutívoros, carnívoros e os hemófagos, que se alimentam de sangue.
Estamos desenvolvendo também macacos híbridos com o objetivo de
estabelecer seus tipos. No borboletário, procuramos conhecer e
aperfeiçoar os conhecimentos sobre as escamas iridescentes das suas
asas. Respeitado por seus trabalhos sobre orquídeas e
biologia marinha, Ruschi passou a ser conhecido mundialmente pelo
seu esforço na preservação da fauna e flora e, sobretudo, como
ornitólogo dedicado aos beija-flores. É neles que o filme realizado
por Orlando Bonfim mais se detém, ao menos em sua primeira fase. Se
a simples observação do seu comportamento nos deslumbra é a
descrição de caráter etiológico que esclarece o seu fenômeno. Um
trecho do depoimento gravado por Augusto Ruschi para o filme: – O beija-flor é intrinsecamente ligado à
natureza, ao seu habitat. Em geral, a destruição de uma espécie está
vinculada à caça, a ação predatória do homem. No caso dos colibris,
que no Brasil vivem principalmente nos campos e pradarias, a sua
destruição é o resultado da depredação das matas. Exterminando-se o
habitat, destrói-se tudo A alimentação de um beija-flor é baseada em
proteínas e carbohidratos. À medida que ele vai crescendo, a
proporção de carbohidratos aumenta, até que o total da alimentação
se divide em 1% de proteína e 99% de carbohidrato. É deste elemento
que vem a imensa energia que ele consome Seus batimentos cardíacos –
que chegam até 1500 por minuto durante o dia – caem à noite, quando
sua temperatura baixa em média sete graus – de 42-43 para 34-35,
quando então ele começa a dormir. Quando a temperatura desce para 14
graus, seu corpo entra em estado de hibernação, no qual permanece de
14 a 16 horas no máximo. "Estamos estudando a seu sistema
cardiológico para descobrir o que provoca esta hibernação", diz
Ruschi. –
Classificados basicamente em espécies sedentárias e migratórias, os
beija-flores só existem na América. Os migratórios chegam a
percorrer nove mil quilômetros, relata Ruschi. – Os que vão do Alaska até o Golfo do México
param de 900 em 900 quilômetros, em gerai, uma média de 20 a 20
horas. Baixam à terra por 15 dias, durante os quais engordam dois
gramas, e voltam ao céu por outros tantos quilômetros. Quando chegam
ao local desejado, se reproduzem e regressam à terra natal. Já os
sedentários, sobem até mais de cinco mil metros de altitude. De todos os espetáculos proporcionados por este
minúsculo pássaro de 14 gramas em média, o mais interessante talvez
sejam as fases do seu acasalamento. Elas são em número de cinco:
aproximação, perseguição da fêmea, apresentação, exibição da
plumagem e cópula, que dura apenas dois segundos Através do
depoimento de Ruschi, elas podem ser assim descritas. – Estas observações se integram à etologia –
ciência do comportamento dos animais – e foram aproveitadas por
Konrad Lorenz, prêmio Nobel de Medicina em 1974, em sua teoria dos
liberadores da agressividade animal. Na verdade, o filhote já tem
conhecimento da mãe desde o ôvo na incubação, ele ouve o canto da
mãe quando está no ninho. E, desde o ôvo. o filho responde ao
chamado. Na aproximação para o acasalamento, o macho se coloca a uma
distância de seis até cem metros do ninho da fêmea. Se a fêmea
aceita o macho, ela sai, em vôos horizontais e verticais; caso
contrário, ela se recolhe ao ninho. à perseguição se sucede a
apresentação de macho e fêmea em sucessivas revoadas. Dá-se, então,
o mais belo momento do processo: a exibição da plumagem do macho
para a fêmea. Ele tem que estar com a plumagem perfeita, as penas
nos lugares, com sua mais nítida coloração e forma, para poder
exibi-las à fêmea. Esta é uma espécie de estímulo que a fêmea recebe
para o acasalamento, que se manifesta primeiramente como conquista
psicológica e se concretiza depois como posse física. 0 canto, a
exibição da plumagem envolvem a fêmea na conquista psicológica, que
torna possível a física. Neste instante, após piruetas e revoadas
cujo som se assemelha a um bater de castanholas, ocorre o que
chamamos um paroxismo: há uma parada no céu. Se a fêmea aceita o
macho, ela se coloca numa posição – que o macho reconhece – e então
ocorre o acasalamento. Após o encontro, o macho não interfere no ninho,
que fica sob a responsabilidade da fêmea. Ela incuba e este processo
pode durar de 20 a 35 dias. Segundo Ruschi, "isto depende do tempo
em que ela dá as rações alimentares – que são em número de 37". Em nosso viveiro, reproduzimos quase todas as
espécies: das 350 existentes no mundo, temos mais de 270, o que
representa dois terços, conta Ruschi: – Desde 1928 trabalhamos na reprodução dos
colibris. 0 primeiro trabalho foi publicado em 1933. Agora estamos
fazendo a monografia do Brasil, que vai sair com 150 pranchas
coloridas e uma completa descrição da etiologia. Num trabalho
paralelo, para a sistemática da espécie, estamos fazendo o
levantamento da dimensão, peso, etc. Augusto Ruschi, em sua simplicidade, não esconde
a formação de um cientista por vocação e às vezes, conforme observa
Orlando Bonfim, "espontâneo e intuitivo". Seria impossível, lembra
Orlando, fazer um filme como este sem a presença preciosa deste
cientista, que "aos quatro anos corria atrás dos passarinhos e aos
12 anos desenhava orquídeas" e através dos estudos da polinização
das orquídeas chegou aos beija-flores. Na Bienal de Arquitetura de
1974, uma sala exibia 180 desenhos de orquídeas feitos por Ruschi
entre dez e 14 anos de idade. Ao lado de seu amor pelos beija-flores ou
chupa-flores,
pica-flores,
zum-zum zum-zum,
jóias vivas,
colibris,
pétalas aladas, em seus
vários nomes de designação popular, o cientista conserva o vigor que
lhe permite lutar pela preservação do equilíbrio biológico da
natureza. – É preciso despertar as autoridades para a
preservação das florestas e caatingas e todos outros tipos de terra
existentes no país. Estamos fazendo um levantamento das águas de
Santa Teresa. É de estarrecer a sua degradação, de águas puras em
barrentas. Em vez de plantar coisas úteis, plantamos coisas
exóticas. Reflorestamos com eucalipto, que é economicamente
aproveitável, quando só é possível reflorestar com as essências do
lugar: trata-se da técnica do polimorfismo, que compreende de 40 a
50 essências por hectare. Este processo é utilizado em países como o
Canadá, a Finlândia, a Austrália e também no Alaska. Aqui no Brasil
se planta o que quer, quando se quer e onde se quer. Não há nenhuma
lei protegendo a natureza dessas arbitrariedades.
Sérvulo Siqueira
Publicada no jornal O Globo
em 26 de outubro de 1977 |