Cinema brasileiro hoje: a vitalidade represada

 

Finalmente, o sonho de muitos anos parecia ter se realizado. Numa semana, todos os cinemas da Cinelândia estavam ocupados por filmes brasileiros. Na semana passada, dez filmes nacionais estavam sendo exibidos nos circuitos do Rio de Janeiro. Entre eles, pelo menos cinco – O jogo da vida, Os doces bárbaros (já retirados mas com retorno anunciado para breve), Morte e vida severina, Chuvas de verão e A queda, sem falar de Doramundo, premiado no último Festival de Gramado, são obras que estão à altura dos melhores filmes estrangeiros. Esta vitalidade cria, no entanto, problemas paralelos. Com a proximidade do mês de junho, considerado "morto" nos meios musical, teatral e cinematográfico devido aos jogos da Copa do Mundo, os lançamentos de filmes brasileiros se avolumaram. Diegues, Zelito e Xavier estão aqui falando do cinema brasileiro de hoje: da sua rápida industrialização, dos problemas de distribuição e exibição ainda existentes e, sobretudo, de sua grande vitalidade atual.

Embora tenha se declarado refratário ao "debate cultural", Carlos Diegues acabou abrindo-o, ao escrever um texto que serviria de opúsculo para o release de Morte e vida severina, de Zelito Viana. Entitulado "O esplendor da ficção e a consciência do real", o artigo contesta o cinéma-vérité, cuja "lógica da isenção pertence ao frio mundo das aparências", que transforma "o filme em instrumento e o real em objeto da curiosidade intelectual". Ao contrário, Morte e vida, para Cacá Diegues," se propõe, primeiro, a investigar o real social, mas não se conforma com encerrar a investigação no contorno desta aparência". E aí continua afirmando "que o esplendor da ficção ordena a consciência do real, demonstrando que se não houver intervenção autoral sobre ele, a obra de arte não se completa". O diretor de Chuvas de verão acredita: "a crise do cinema mundial não está na estrutura ficcional; a crise é de linguagem social". Enquanto, segundo Diegues, no cinema-verdade "a distância só é vencida pelo tédio do espectador, em Morte e vida severina, felizmente, o real é tratado como momento e não como documento".

Ao filmar "passionalmente" Zelito, para Cacá, "adere passionalmente ao que filma, transformando sua experiência em, ao mesmo tempo, biografia e história". "E o que é o cinema senão isso?," pergunta. "A mais bela das artes contemporâneas" e conclui: "O povo nas telas e nas salas, pensando e sendo pensado".

Por sua vez, Zelito Viana queixa-se do lançamento do filme, do fato de que o filme foi exibido no Caruso e, diz ele, "não fiz o filme para ser lançado num cinema de arte". Zelito conta que o filme foi feito para passar na televisão, onde seria lançado nacionalmente:

Vendi o filme para a tv, mas a censura proibiu para o exterior e depois para a televisão e aí me jogou no mercado cinematográfico e, como este mercado é mais voltado para coisas mais fáceis, vendáveis diretamente, então em princípio o filme já estava condenado a ir para o gueto do cinema de arte explica. Neste sentido, afirma, o filme pode ser considerado frustrado na medida em que não conseguiu atingir o objetivo para o qual foi feito e pela minha própria consciência de já ter vivido esta experiência em filmes anteriores eu realmente relaxei e nem mesmo estava no Rio de Janeiro na época do lançamento, o que poderia ter contribuído para diminuir este problema. De outra parte, Zelito comenta: A Embrafilme infelizmente tem uma distribuidora que permanece com os mesmos defeitos de todas as distribuidoras tradicionais, quer dizer, é uma boa distribuidora, mas ainda tradicional, a melhor de todas certamente, mas que ainda faz as coisas como se faziam há 30 ou 40 anos, não tem nenhuma renovação, ao contrário, até reforça o sistema da tradição.

Zelito argumenta: quando você joga seis milhões de publicidade para lançar um filme e 50 mil cruzeiros para outro, você na verdade deveria fazer o contrário, porque se o objetivo fosse transformar o mercado seria preciso, primeiro, valorizar o produto menor. Isto seria utópico mas, raciocinando em termos gerais, é claro que a Embrafilme está reforçando o mercado que existe, e que é muito viciado.

Sobre Chuvas de verão, o autor de Morte e vida diz: Representa uma certa síntese do cinema do Cacá, eu tenho a impressão de que este filme começa um novo cinema dele. Um cineasta, quando faz um filme, tem sempre muitas injunções na cabeça e este é o primeiro filme do Cacá Diegues em que outras implicações não atuaram em sua cabeça, que não as suas próprias determinações.

É dai que resulta, em sua opinião, "um lado pessoal muito grande do filme, observação da vida muito lírica, os detalhes e a construção do filme: coisas muito significativas em Chuvas de verão".

Para Zelito, como os critérios de distribuição dependem muito do gosto do exibidor, é provável que o sucesso do filme anterior de Diegues, Xica da Silva tenha concorrido para o bom circuito exibidor que Chuvas de verão vem tendo agora e certamente, do ponto de vista do público, também para a sua carreira comercial bastante razoável. Zelito ainda não sabe quanto seu filme já rendeu mas acredita que a longo prazo ele se paga, porque um dia "a Censura vai liberá-lo para o exterior, a Censura para a televisão também, e ele vai se pagar, não há problema".

Lançado esta semana no Cinema-II, A queda, de Ruy Guerra e Nelson Xavier, vem precedido do sucesso no Festival de Berlim, quando ganhou o Urso de Prata, depois de muitos anos sem prêmios obtidos pelo cinema brasileiro no exterior. Este motivo foi precisamente, segundo Nelson Xavier, a razão para a antecipação do lançamento do filme:

O que aconteceu com a distribuição de A queda foi o seguinte: nós não estávamos pensando em lançar o filme já mas tivemos que prepará-lo rapidamente para Berlim, para onde ele já estava convidado a partir da moviola, em banda dupla, e ele acabou seguindo praticamente não concluído; tanto que a cópia até hoje ainda está mal cuidada. A gente não pretendia um filme bonito; com a ampliação de 16 mm para 35 mm aceitávamos e incorporávamos esta pobreza e esta sujeira que são uma coisa inerente ao que o próprio filme propõe. Mas o fato de ter obtido o Urso de Prata fez com que, chegando aqui, fosse apressado o seu lançamento. Quando buscamos os circuitos de exibição, vimos que eles estavam todos tomados, exatamente pela extraordinária vitalidade do cinema brasileiro neste momento. O circuito aconselhado pela Embrafilme já estava ocupado com Chuvas de verão e dele só restava, disponível, o Cinema-II. A gente aceitou esta condição porque, do contrário, teríamos que adiar o lançamento para agosto ou setembro. Como se vê, a época está tornando a concorrência mais intensa, até para os autores nacionais. Mas felizmente, o filme está indo bem.

Mas isto não elimina o fato de que o filme possa ser lançado no circuito comercial da Zona Norte, não é?

Não, na quarta semana ele parte para o Art-Méier, Art-Madureira e, parece, o Studio-Paissandu. Mas o nosso plano é ampliar a exibição para cineclubes, faculdades e, inclusive, mostrar o filme para operários do metrô do Rio e São Paulo.

Ampliando o debate, como você veria o seu filme, que trata de uma proposta de cinema renovadora, ao lado de "Chuvas de verão", que aborda a realidade de uma perspectiva mais intimista ?

Eu respeito acima de tudo, tanto no meu trabalho como no dos meus colegas, a possibilidade de todos se expressarem com absoluta independência e autonomia. O que eu respeito muito no filme do Cacá é uma direção bem realizada; hoje que ele parece ser um diretor maduro, acabado. Cacá Diegues sabe o que quer; dobra o melodrama, dá um passo além e faz isso com grande cuidado. Do ponto de vista da linguagem, eu considero a narrativa muito estratificada, não é o que eu possa considerar o meu caminho. Não me familiarizo muito com isso mas reafirmo a possibilidade de ele realizar isso com independência, que eu acho importante no cinema brasileiro de hoje. Agora mais do que nunca porque o cinema está se industrializando rapidamente o importante é ressalvar a identidade do autor de cinema como uma questão fundamental neste momento. "Chuvas de verão", assim como "Lúcio Flávio" e "A dama do lotação" que eu ainda não vi são caminhos de um cinema, o brasileiro, que está se industrializando rapidamente. A ressalva é necessária porque a Embrafilme na medida em que veio dar uma infra-estrutura a esta industrialização está determinando uma definição de alguns autores que já foram mais pessoais. Agora há um grupo que vai fazer um cinema muito mais de entretenimento do que de expressão e de cultura e outros, certamente, vão se conservar. Eu insisto na afirmação do autor porque agora é o momento e esse processo é irreversível de se ver o que se conserva e o que se modifica, ou seja, o que parte para o entretenimento comercial, o cinema que vai se industrializar no sentido de se comprometer mais com o mercado do que com a expressão, e o que vai ficar. Acho que alguns estão ficando, estão resistindo.

– Neste sentido, como você situaria "A queda "dentro deste quadro?

Eu acho que A queda tem muito parentesco com o Cinema Novo, exatamente no sentido de afirmar a autonomia de sua linguagem, a defesa da produção de baixo custo e o compromisso de falar com o povo, de tocar nas contradições agudas da nossa sociedade. Ao invés de ficar falando de amenidades o filme afirma o sentido de enfrentar a realidade, de confrontá-la. Por isso eu acho que A queda retoma a perspectiva do Cinema Novo, que foi um pouco superada pelo processo do cinema brasileiro, esse processo industrializante.

Sérvulo Siqueira

Publicada no jornal O Globo em 8 de maio de 1978