O PT e a Questão Indígena

 

Como afirmou José Carlos Mariátegui em ensaio clássico, a questão indígena está entranhada na estrutura econômica. Tem suas raízes no regime de propriedade da terra.

Por mais de 500 anos o conquistador europeu, que se apossou do território outrora ocupado por mais de seis milhões de habitantes, ignorou ou eludiu este problema com simulacros estéreis como medidas administrativas ou policiais e estratégias de catequização ou programas assistenciais que, por seu caráter superficial e inócuo, terminaram sendo condenados a um absoluto descrédito.

O sistema de poder do latifúndio, hoje incorporado ao agronegócio, conservou intacto os seus direitos fundamentais sobre a terra e, por conseguinte, sobre os índios.

Iniciativas isoladas como as do Marechal Rondon, dos irmãos Villas-Bôas e de ilustres antropólogos e sertanistas de ontem e de hoje, não conseguiram impedir a contínua assimilação do indígena ao modelo capitalista vigente, a destruição progressiva de suas terras e a degradação de sua cultura.

No documento publicado a seguir, Henrique Cavalleiro, um geógrafo que por 25 anos vem percorrendo os sertões do Brasil, relata como a ascensão ao poder de um projeto político que se apresentava como "democrático e popular" não foi capaz de reverter a continuidade deste processo histórico colonial e, ao negar muitas das conquistas do passado, agrava ainda mais o drama dos descendentes dos primeiros habitantes da nossa terra. (SAS)

 

 

Desde a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, os povos indígenas são vistos como obstáculos ao desenvolvimento. Em função disso, várias etnias, com línguas e culturas diversas, foram dizimadas ao longo dos séculos. Hoje somam certa de 800 mil indígenas no Brasil, divididos em 225 povos e 180 línguas. A população voltou a crescer, porém as pressões do modelo desenvolvimentista continuam a impor graves problemas socioculturais aos primeiros habitantes do país.

Esperava-se que, com a chegada ao poder de um governo “popular e democrático”, as questões socioambientais seriam finalmente tratadas com mais sensibilidade e que os direitos históricos e constitucionais dos povos indígenas fossem finalmente reconhecidos e protegidos. A perspectiva era a de que o Brasil passaria a experimentar, de fato, um projeto de desenvolvimento sustentável, baseado no uso racional dos recursos naturais, no combate à visão imediatista e predatória e na valorização dos critérios científicos.

No entanto, o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) aliou-se aos interesses econômicos mais poderosos, com ênfase na bancada ruralista, e adotou um modelo de desenvolvimento muito parecido com o do regime militar, baseado em empreendimentos faraônicos que geram muito lucro para poucos, com duvidosa relação custo-benefício, deixando um rastro de destruição e problemas sociais. O grande exemplo é a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que está sendo erguida no rio Xingu, no coração do estado do Pará. Ao invés de investir no aumento da eficiência do sistema elétrico já existente, o governo “popular e democrático” preferiu construir um monumento bilionário que, além dos graves impactos sobre os povos indígenas e o meio ambiente, está causando um crescimento totalmente desordenado na cidade de Altamira. Milhares de pessoas de todo o país migram para o município em busca de emprego no canteiro de obras de Belo Monte. O custo de vida disparou, a infraestrutura de habitação e saneamento não dá conta da crescente demanda.

Além de Belo Monte, o governo petista quer construir outras hidrelétricas na região amazônica, além de asfaltar estradas construídas nos anos setenta pelos militares e que atendem aos interesses dos grandes produtores de soja e deixam as terras indígenas cada vez mais ilhadas. Aliás, o que ainda existe de floresta nativa em regiões como o norte do Mato Grosso e o sul do Pará é representado justamente pelos territórios indígenas. Tal fato pode ser facilmente comprovado pelas imagens de satélite que mostram o avanço do desmatamento e c contraste com as áreas ainda preservadas.

Com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) totalmente sucateada, muitos indígenas acabam se deixando aliciar pela pressão consumista e pelo assédio dos empreendedores, causando nas comunidades grande dependência econômica e ruptura dos valores tradicionais. Por falar em FUNAI, trata-se de um órgão criado pelos militares em 1967, substituindo o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Vinculado inicialmente ao antigo Ministério do Interior e atualmente ao Ministério da Justiça, a FUNAI sempre foi pressionada e discriminada tanto pela direita ruralista quanto pelas organizações não governamentais (ONGs) e a academia. De um lado, a FUNAI atrapalha os interesses dos grandes grupos econômicos quando, eventualmente, consegue de fato defender os índios. Por outro, é taxada de paternalista, retrógada e tutelar por muitos antropólogos, cujas críticas genéricas não costumam diferenciar os técnicos honestos e idealistas que atuam na fundação daqueles comprometidos com práticas questionáveis.

Uma das atribuições da FUNAI, que desde a década de 1990 perdeu o monopólio sobre a questão indígena, seria a de articular e promover a interface e a complementariedade entre as várias políticas públicas voltadas àquelas populações, dispersas por inúmeros ministérios, com destaques para os serviços de saúde e educação. Ocorre que tal articulação, de fato, não existe. As ações governamentais seguem totalmente fragmentadas, muitas delas terceirizadas para ONGs ou transferidas para estados e municípios, o que causa grande desperdício de recursos públicos, além de deixar os povos indígenas totalmente desorientados em meio ao cipoal burocrático dos vários órgãos envolvidos.

Em 2010, finalmente, foi realizado um concurso de grande monta para que a FUNAI, depois de muitos anos, renovasse seus quadros, contratando mais de 400 novos servidores. Porém, fez-se uma seleção para o cargo genérico de “indigenista especializado”, além de outros de nível médio. Como não foram especificadas a formação ou a área de atuação, não fez a menor diferença se o “especializado” da FUNAI fosse antropólogo, agrônomo, contador, filósofo, veterinário, dentista ou com qualquer outra formação. Com isso, a atuação técnica do órgão fica claramente prejudicada.

Além disso, dois decretos editados nos últimos anos deram à FUNAI um novo organograma cujo resultado foi deixar a instituição ainda mais distante dos índios. Os antigos Postos Indígenas foram substituídos pelas Coordenações Locais, a maioria situada fora das terras indígenas. A questão não está na mudança do nome mas sim na ideia simplória que partiu das ONGs que atualmente influenciam as decisões do órgão, segundo a qual a presença direta do órgão nas aldeias representa um resquício das práticas de tutela e controle sobre a autonomia das comunidades indígenas.

Ocorre que atualmente a FUNAI é a única instituição que, na prática, não tutela mais os índios, cuja autonomia está sendo solapada pelos madeireiros, pelas prefeituras, pelos empreendedores e pelos programas sociais: a maior parte dos índios atualmente recebe o Bolsa Família, sem nenhum critério antropológico que realmente justifique a massificação de um programa universalizante para populações culturalmente diferenciadas.

O fato é que a ausência da FUNAI nas aldeias tem facilitado a invasão das terras indígenas e deixado as várias ações governamentais ainda mais desarticuladas, uma vez que não se levou em conta o fato de que o problema está na qualidade técnica dos trabalhos desenvolvidos pelo órgão e não em sua localização. Da mesma forma, não se trata de promover uma falsa dicotomia entre servidores antigos e servidores novos, como se ideias retrógadas e ideias “modernas” a respeito da questão indígena pudessem ser definidas de forma generalizante. A “velha” FUNAI distribuía sementes e ferramentas. A “nova” FUNAI distribui cestas básicas. A “velha” FUNAI demarcou várias terras indígenas, mesmo com muitas dificuldades. A “nova” FUNAI não demarca mais nada, os processos estão praticamente paralisados e o governo editou portaria que submete a decisão sobre futuras demarcações a outros órgãos, o que tornará os trâmites ainda mais lentos e sujeitos às pressões políticas e econômicas.

Por fim, os povos indígenas não são devidamente ouvidos, instâncias como a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), criada em 2007, não possuem poder deliberativo e as comunidades que se colocam contrárias à construção de grandes empreendimentos não são levadas em conta. As consultas prévias são realizadas, porém como o governo já decidiu taxativamente que todas aquelas obras serão realizadas a todo o custo (salvo alguma ação movida pelo Ministério Público), tais consultas acabam sendo um simulacro de debate democrático.

É preciso deixar claro que os povos indígenas e seus aliados não querem impedir o progresso e nem internacionalizar a Amazônia, conforme normalmente se acusa de forma superficial. Da mesma forma, os índios não querem permanecer em redomas, preservados como objetos de museu. O que se defende é um novo paradigma que norteie as relações do estado brasileiro com o meio ambiente e com os grupos étnicos, respeitando os princípios da sustentabilidade, do equilíbrio socioeconômico e da diversidade biológica e cultural do Brasil.

 

Henrique Cavalleiro é geógrafo com vinte e cinco anos de atuação na questão indígena, Brasília-DF.