21 de
setembro de 2010
À medida que se aproxima o final da campanha eleitoral e vão se
definindo as preferências dos eleitores, ressurgem como sempre – e de
maneira assombrosa – os velhos traumas e fantasmas, despertados pela
lembrança de fatos vividos no nosso passado mais recente.
A polarização da disputa, que coloca de um lado uma velha classe
política e partidários de um modelo muito perverso de desenvolvimento
econômico hoje em franco declínio em termos de apoio popular – que
recorrem a táticas de denúncias de escândalos de corrupção nem sempre
comprovados – e de outro a candidata oficial, amparada pelo apoio de um
presidente com imensa popularidade, traz a sensação de que as elites
mais reacionárias que dominam este país há muitos séculos preparam um
dramático e provavelmente muito bem calculado ataque final.
A própria candidata oficial, ampla favorita nas pesquisas para ganhar as
eleições no primeiro escrutínio, a ser realizado no próximo dia 3 de
outubro, afirmou em um emotivo pronunciamento que a oposição prepara
“uma bala de prata”, com a qual espera implodir a sua crescente
aceitação popular. Ao mesmo tempo, no entanto, e de forma paradoxal, a
sua imagem a princípio muito vinculada ao atual presidente ganha
autonomia e identidade enquanto seu adversário mais próximo perde apoio
até mesmo entre os próprios correligionários.
Os cidadãos brasileiros que tiveram a oportunidade de votar nas eleições
de 1989, a primeira a ser realizada neste país desde 1960, lembram-se
com clareza do episódio que marcou os últimos dias do segundo turno da
corrida presidencial de então, quando uma célula clandestina de esquerda
sequestrou um riquíssimo empresário dono de uma grande rede de
supermercados. Certamente muitos ainda se recordam do final espetaculoso
do sequestro, quando um dos militantes deixou a casa onde haviam se
refugiado vestindo a camisa do partido do candidato com a maior
popularidade.
Somado a outros ultrajes, que compreenderam difamações, informações
mentirosas da imprensa e provavelmente suborno, este enorme estelionato
político terminou por levar à vitória do candidato de direita. Não
faltou ainda, no dia das eleições, o lockout dos ônibus, orquestrado
pelo sindicato patronal dos concessionários deste que deveria ser um
serviço público. Os tempos mudaram e podemos até inferir que o eleitor
brasileiro adquiriu maior consciência durante todo esse tempo, donde se
pode concluir que semelhante manipulação não se repetirá.
No entanto, se o candidato José Serra se encontra muito distante da
posição que então ocupava Fernando Collor nas pesquisas de opinião
pública, as estratégias da direita também parecem ter se sofisticado.
Sem conseguir obter apoio popular para suas pouco convincentes pregações
em defesa da moralidade pública, a oposição ao governo Lula da Silva
começa a propor abertamente um golpe institucional por intermédio da
Justiça Eleitoral ou por via de um “pronunciamento” militar, como chegou
a sugerir em algumas ocasiões o candidato da coligação liderada pelo
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
Nesta linha, será quase inevitável que essa armadilha política caminhe –
o que já se vislumbra claramente – para uma crescente vinculação de
Dilma Rousseff com ações armadas de contestação do regime militar que
perdurou de 1964 a 1985, repetindo uma estratégia de demonização que tem
seu modelo na política imperial americana e é hoje frequentemente
empregada por setores políticos e econômicos inescrupulosos em todo o
mundo.
O exercício de especulação a que muitos partidários da candidata do
Partido dos Trabalhadores (PT) já se dedicaram levou à conclusão de que
este grande arco conspiratório que abarca os grandes órgãos de
comunicação do país, os partidos políticos de oposição e poderosos
grupos econômicos que sempre desfrutaram de enormes privilégios no
Brasil trama um grande ardil contra Dilma Rousseff, visando demolir num
só golpe o expressivo apoio popular que a candidata vem conquistando
especialmente entre as camadas mais desfavorecidas da população.
Pelo modo como isso vem sendo conduzido, estima-se que a estocada final
terá como eixo o suposto passado guerrilheiro de Dilma, associando-a a
atos criminosos como assassinatos, sequestros, assaltos a bancos, etc.
Certamente todo o tipo de montagens e falsificações fará parte desse
processo, desde adulterações fotográficas, depoimentos forjados, fatos
sensacionalistas fabricados, contando naturalmente com a expertise de
marqueteiros de plantão nacionais e estrangeiros, técnicos de aluguel
que se dizem especializados em expressão corporal, videntes e outros
bruxos de campanha.
Como não se pode garantir a completa eficácia desses artifícios e
levando em conta um certo enfado que a monótona repetição das artimanhas
vem provocando na população, as nossas elites parasitárias preparam
outras armas que acreditam possam ser mais eficientes. A Lei Eleitoral
12.034, promulgada em 29 de setembro de 2009 pelo presidente da
República, que modifica muitos aspectos da Lei 9.504 de 30 de setembro
de 1997, introduziu alguns dispositivos que já foram interpretados como
tendentes a provocar a “supressão” do direito de voto, ou seja, podem
ser consideradas como propensos a criar um fundamento jurídico que
impeça os eleitores de votar.
Chamada de “minirreforma eleitoral”, a lei 12.034 teve como relatores
duas das mais emblemáticas figuras da direita brasileira e muitos
analistas insuspeitos do processo eleitoral acreditam que a introdução
desse dispositivo teve como objetivo prejudicar Dilma Rousseff na região
Nordeste, onde a população mais pobre – que deve votar de forma maciça
na candidata do PT – talvez não tenha sido convenientemente informada
acerca da nova exigência e em muitos casos não disponha de recursos para
possuir mais de um documento.
Enquanto Marco Maciel (DEM-PE) – um político de enorme longevidade na
cena pública brasileira, cujos ancestrais remontam aos ministérios
conservadores de D. Pedro II e incluem governadores e prefeitos no
estado de Pernambuco – talvez não tenha mais uma sobrevida, a Eduardo
Azeredo (PSDB-MG), que chega provavelmente ao seu ocaso como senador já
que sob processo por peculato e lavagem de dinheiro no Supremo Tribunal
Federal não alcançou as condições políticas para tentar a reeleição,
talvez ainda lhe reste a saída pela porta dos fundos de um mandato de
deputado federal, cargo que lhe garantirá a imunidade por mais algum
tempo.
Aprovada de forma consensual por todos os partidos como um instrumento
contra as fraudes eleitorais e promulgada pelo presidente da República
no final do ano passado, a lei 12.304 modificou um dispositivo da lei
6.996, de 1982, que permitia que o eleitor votasse exibindo apenas um
registro oficial que comprove a sua identidade e passou a exigir, além
do respectivo título, que o votante também apresente um documento de
identificação com fotografia.
Adotando um procedimento semelhante, o governo de
Jebb Bush – irmão do infame
George W. Bushinho – realizou
uma verdadeira limpeza no colégio eleitoral da Florida, o que
possibilitou a vitória fraudulenta do ex-presidente americano no estado
contra Al Gore por 537 votos e sua consequente eleição presidencial em
2000.
Tramitam ainda na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal
outros projetos que alteram a atual legislação eleitoral de 2009. O mais
amplo deles é o que retoma a chamada minirreforma eleitoral.
Reapresentada no primeiro semestre deste ano pelos mesmos notórios
Eduardo Azeredo e Marco Maciel, a proposta recupera a maior parte das
emendas aprovadas pelos senadores no ano passado, mas que não foram
incorporadas pela Câmara.
As proposições da nova lei eleitoral provocaram a manifestação do
candidato ao governo do Estado do Rio de Janeiro, Fernando Gabeira, que
chegou a pregar à sociedade que desobedeça a lei caso ela seja aprovada
no Congresso. Citando Thoreau, o candidato propôs uma forma de
“desobediência civil” se o projeto que coloca a Internet sob as mesmas
regras que a televisão e rádio passar no Parlamento.
Se a proposta for aprovada, esses meios de comunicação não poderão mais
emitir opiniões sobre candidatos em eleições e serão obrigados a
conceder o mesmo espaço para a cobertura da campanha de todos os
políticos. Embora seja um veículo de livre iniciativa, a Internet também
deverá seguir as mesmas regras que o rádio e a TV, que são concessões do
poder público. Em tom de ironia, Gabeira afirmou, referindo-se de forma
indireta ao mensalão de Minas Gerais:
– O Azeredo precisa de um filho
piedoso que diga a ele: pai, não se meta com a Internet, fique sossegado
na sua pirâmide.
Temendo uma repercussão muito negativa na sociedade, os senadores já
prometeram alterar o projeto de lei, que em seu texto original determina
que sites noticiosos não poderão apoiar candidatos e exige que os blogs
vinculados a eles não emitam opiniões sobre os políticos em campanha.
Além disso, tais páginas virtuais terão que dar o mesmo espaço para
todas as candidaturas. Caso esses sites decidam realizar debates
eleitorais, os candidatos cujos partidos tenham mais de dez deputados
federais deverão ser convidados.
Considera-se que se o projeto for aceito no Senado e na Câmara, a
Internet ficará cada vez parecida com os meios impressos o que – levando
em conta o alto grau de imoralidade e incompetência que envolve os meios
de comunicação hoje no Brasil – prenuncia um cenário muito sombrio para
a nossa sociedade. Considerando o risco de que essas proposições
fascistas possam se transformar em lei, o deputado federal Júlio
Semeghini, do mesmo partido de Eduardo Azeredo (PSDB-SP), relator do
Projeto de Lei 89/2003, também conhecido como Lei Azeredo ou AI-5
Digital, que propõe novas formas de enquadramento para os crimes de
Internet e endurece a pena de outros já existentes, declarou que esse
projeto de lei, que gerou grande polêmica na sociedade civil, não será
aprovado pela Câmara. – “Não mereceria ser aprovado um projeto de lei desses. E não será. Não
se preocupem”, afirmou o deputado durante um evento de tecnologia no
início do ano, acrescentando ainda:
– Nós fomos alertados e estamos
achando que realmente não é o momento de aprovar com dúvidas,
principalmente em relação ao texto e à forma como ele estava sendo
colocado. Esse projeto está sendo reduzido a dois, três tópicos.
Sabe-se que, paralelamente à tramitação do projeto na Câmara, o
ministério da Justiça desenvolve, com a participação da sociedade, um
marco regulatório da Internet brasileira, que abordará os temas
abrangidos pelo PL 89/2003. O texto já passou por consulta pública e
agora espera uma forma final do governo para ser levado ao Congresso.
Na verdade, um dos grandes temas não explicitados nesta corrida
presidencial é o que opõe claramente o ponto de vista do governo Lula ao
de seu opositor José Serra, que advoga abertamente o controle da
Internet. Uma outra questão-chave foi a recente revogação da proibição
do humor em relação aos candidatos a postos eletivos, que representou
uma vitória para o livre exercício do pensamento no país.
Personalidade nitidamente autoritária que tem revelado características
fascistóides na campanha de 2010, Serra vem demonstrando com frequência
uma notória incapacidade para conviver com o contraditório, como as
perguntas inconvenientes dos repórteres e as observações que considera
inoportunas, e já protagonizou episódios canhestros e de extrema
grosseria como o ocorrido na rede de televisão CNT – amplamente
noticiado e reproduzido por meio de uma gravação sonora em sites e blogs
da rede mundial de computadores. Demonstrando uma clara forma de censura
ou autocensura, o episódio foi convenientemente expurgado do programa
levado ao ar na noite do último dia 15 de setembro. Mais tarde, de
maneira fugidia, o diretor de jornalismo da emissora chegou a declarar
que havia entregue à equipe do candidato do PSDB a gravação original da
entrevista, não tendo guardado nenhuma cópia. Sua explicação para essa
atitude foi exemplar:
– Nós não temos interesse em campanha eleitoral.
A ocultação de acontecimentos de que participaram José Serra e a
apresentadora Márcia Peltier, documentada pelo nítido registro das vozes
– em que o candidato ameaça se retirar do programa durante a gravação e
posteriormente determina à apresentadora o tipo de perguntas que está
disposto a responder – lança um imenso véu de descrédito sobre a
honorabilidade profissional e ética da rede de televisão e se estende –
pela contínua repetição dos mesmos fatos – a vários outros veículos de
informação como a Rede Globo, a
Folha de S.Paulo, a sinistra revista
Veja – que o jornalista
Sebastião Nery considera que é escrita em inglês e posteriormente
traduzida para o português –, o hebdomadário
Época e outros.
Arrogante e prepotente com alguns, José Serra pode até assumir posições
dóceis e submissas com outros, como ocorreu numa recente entrevista ao
Jornal Nacional da Rede Globo
de Televisão quando foi bruscamente interrompido pelo apresentador logo
após iniciar uma resposta à pergunta que acabava de ser formulada. Ao
final, chegou mesmo a agradecer à emissora pela oportunidade concedida.
Fica cada vez mais claro que a imensa maioria da população brasileira já
compreendeu que o candidato do PSDB não reúne os predicados para assumir
um posto de tamanha importância como o de presidente da República e isto
já deve ser sido percebido pelo próprio postulante.
Por outro lado, vai se tornando extremamente necessário o debate neste
país sobre o verdadeiro papel que os meios de comunicação de massa devem
exercer na sociedade e a contribuição que os nossos veículos de
informação – um sistema verdadeiramente feudal controlado por algumas
famílias há mais de cem anos – vem oferecendo para o aperfeiçoamento do
nosso modelo democrático ao longo do tempo. Embora disponham de uma
grande força de pressão, será impossível evitar que os contínuos atos de
delinquência – informação enganosa, deturpação e omissão de notícia,
tratamento sensacionalista de assuntos, etc. – em que esses jornais,
redes de televisão, rádios e revistas vêm incorrendo não levem a uma
indagação profunda na nossa sociedade sobre questões sérias como
competência, honestidade, integridade e ética profissional em uma
atividade tão relevante quanto a da divulgação de notícias e o livre
exercício da informação.
Ao se observar em voo de pássaro o comportamento dos nossos meios de
comunicação, percebe-se que com raríssimas exceções eles sempre
estiveram ao lado dos grupos econômicos e políticos dominantes – quando
não eram parte integrante deles ou seus porta-vozes – patrocinando e
defendendo ditaduras militares, planos econômicos falsificados,
repressões policiais de sindicatos e associações populares, graves atos
de corrupção e toda a sorte de iniquidades. Lembre-se por exemplo dos
famosos editoriais de primeira página do Correio da Manhã, Jornal do
Brasil e O Globo no dia da derrubada do ex-presidente João Goulart, em
1964, o silêncio diante do Ato Institucional nº 5, em 1968, o papel da
Rede Globo na repressão militar dos anos da ditadura (1964-1985) e um
sem número de casos que são hoje de amplo conhecimento público. Com a
exceção dos jornais Última Hora, depois praticamente fechado pelo
governo militar, e O Estado de S. Paulo – com as suas famosas receitas –
nenhum desses poderosos meios de informação ousou sequer resistir à
truculência da censura, quando não se transformou em porta-voz do
sistema político dominante ou praticou uma covarde forma de
autocensura.
Seria o caso de se perguntar, de forma legítima: sendo uma concessão
pública, portanto decorrente de um poder popular outorgado, qual é o
papel social que esses órgãos de informação vêm exercendo no nosso país?
Que contribuições vêm oferecendo para o aprimoramento das nossas
instituições, do nosso desenvolvimento cultural e para o esclarecimento
da grande maioria da nossa população, além de servir para o benefício de
uma pequena elite de privilegiados? As escassas informações que esses
veículos têm a oferecer não resistem a um mínimo de questionamento. É de
conhecimento público e notório, referendado inclusive pela sabedoria
popular, que esta verdadeira casta acumulou benefícios apenas para si
própria durante todo o século 20, além de defender seus exclusivos
interesses e pontos de vista, constituir cartéis e grupos de pressão
visando obter benefícios e favores, apoiar golpes de Estado e
expropriações da economia popular e se omitir diante de gravíssimas
questões diretamente pertinentes aos mais profundos anseios da
população.
A quem realmente servem os nossos meios de comunicação? Nas atuais
eleições presidenciais, de forma explícita, abusiva e sem pudores, os
grandes órgãos de informação do Brasil vêm apoiando integralmente – e ao
revés da grande maioria da população – o candidato do PSDB,
transformando denúncias em fatos consumados, publicando manchetes
escandalosas e sem a mínima comprovação, dando crédito desmedido a
ex-presidiários, disseminando falsas informações, etc. Seu comportamento
imoral parece baseado na estratégia da calúnia, considerando que – mesmo
depois de completamente desmentida – sempre restará algo da difamação.
Onde é que se escondem esses meios de comunicação para praticar tantos
delitos? Certamente, na propalada liberdade de informação, direito que
esses órgãos não foram capazes de defender durante o governo militar de
1964-1985, por exemplo. Sabemos hoje – em vista da contínua repetição de
atos de mentira e omissão da informação – que esta liberdade se
transformou em uma monstruosa libertinagem, tal como vem sendo cada vez
mais vista e analisada por inúmeros comentaristas no Brasil e no
exterior.
As eleições presidenciais de 2010, um grande cenário com 135.804.433
protagonistas, apresentam certas peculiaridades e levantam algumas
questões: uma vez que os dois candidatos mais populares se caracterizam
por serem defensores do mesmo modelo neoliberal, quais são concretamente
as suas diferenças? O que faz com que – segundo todos os institutos de
pesquisa da opinião pública – a postulação de Dilma Rousseff disponha de
uma aceitação popular muito superior à de seu concorrente? O que levou o
candidato de oposição José Serra, apresentado a princípio como provável
vencedor, a cair de forma tão abrupta nas sondagens a despeito do maciço
e quase unânime apoio dos meios de comunicação?
Percebe-se hoje que a fabricação da candidatura Serra teve o propósito
de produzir um factóide, um simulacro político com o qual as elites
econômicas e políticas esperavam – assim como fizeram com Fernando
Collor em 1989 – atingir os seus objetivos. Trombeteavam a sua enorme
clarividência, propagavam a comprovada capacidade administrativa
exercida no decorrer de uma longa vida pública e alardeavam que todos
esses méritos esmagariam as parvas qualidades de sua adversária. Agiram
assim da mesma forma como o haviam feito em relação ao atual presidente,
de quem diziam que não teria as credenciais para dirigir o país. Sabe-se
hoje que estavam completamente errados porque Lula da Silva não apenas
se revelou estar à altura do cargo como ultrapassou em todos os pontos o
seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, tornando-se o mais popular
presidente de toda a história recente do Brasil. Recuperou o sentimento
de amor-próprio do brasileiro médio, alcançou reputação internacional
como um estadista com visão global, mediou conflitos internos com
prudência e um agudo senso de sobrevivência, favorecendo na maior parte
das vezes os mais poderosos mas sem esquecer os pequenos e humildes, de
cujo seio emergiu em sua condição de migrante nordestino.
Poder-se-ia perguntar por que, tendo proporcionado tantos lucros aos
grandes grupos econômicos, ainda assim continua a ser tão hostilizado
pelos meios de comunicação, as chamadas doze famílias que controlam o
nosso cartel da informação. Muitos acreditam que talvez a questão não
seja propriamente econômica mas política e sobretudo cultural. A
ascensão do antigo operário metalúrgico, um ex-torneiro mecânico que
chegou a perder um de seus dedos num acidente de trabalho, pode ter
representado um acontecimento extraordinário e imprevisível para as
nossas elites econômicas e políticas que – por mais de 500 anos e desde
o Brasil Colônia – sustentaram um dos mais cruéis sistemas de opressão
social e econômica da história moderna.
Tendo assumido a presidência em 2003, Luís Inácio da Silva vem
evidenciando para a população brasileira a perversidade do governo de
Fernando Henrique Cardoso, não porque tenha realizado uma revolução no
país – na verdade, sua administração esteve muito longe disso – mas
porque demonstrou em tão curto tempo quão pouco os seus antecessores, à
exceção de Getúlio Vargas, haviam feito pelo nosso povo. Daí resulta que
as eleições de 2010, embora coloquem de um lado a candidata do governo e
de outro o seu opositor direto, representam verdadeiramente um
plebiscito entre um Brasil concebido e projetado pelo modelo neoliberal
do governo do PSDB-Frente Liberal (o ovo onde germinou o atual
Democratas (DEM), um país colonizado de consumidores e governado por uma
democracia de mercado, onde os empresários são os condutores da opinião
pública e o Banco Central “independente” rege a economia, e o Brasil de
Lula que – embora possa ter muitas semelhanças com esse projeto – parece
rejeitar essa camisa-de-força. Ao assumir o primeiro plano do proscênio
político, Lula não fugiu à responsabilidade de dar uma face ao seu
governo, com todas as decorrências que possam ser atribuídas a esse
personalismo. O resultado é que os brasileiros sabem hoje que seu
presidente é um homem que veio das camadas mais baixas da população e se
sente orgulhoso do seu povo – ao contrário de FHC, que dizia
sarcasticamente que tinha “um pé na cozinha” – que aprecia uma boa
caipirinha e não se envergonha de vestir a camisa do seu time de
coração, que comete erros de português mas se expressa com sinceridade e
emoção, e representa portanto o oposto do arquétipo do personagem
estereotipado destilado nas telenovelas, nos noticiários falsificados e
no discurso ideológico das classes dominantes.
Uma vez demonstrada a enorme mediocridade do Frankenstein José Serra
criado pela direita brasileira e comprovado o seu rápido deslizar para o
ostracismo das denúncias sem fundamento, a verdadeira questão dessa
eleição passou a ser a polaridade entre um Brasil que parece novo mas
que existe há muito tempo e apenas permanecia escondido por trás dos
canastrões das telenovelas, das manchetes mentirosas dos jornais
impressos, do rádio e da televisão – e o país que os juristas e
empresários do PSDB procuraram fabricar.
Esse factóide, do qual Fernando Henrique Cardoso e José Serra são apenas
alguns dos epígonos, não teria sido certamente possível sem o grande
braço de propaganda orquestrado pelo oligopólio da Globo, que urdiu o
apoio popular que possibilitou os longos anos do regime militar e criou
a atmosfera irreal que permitiu o desmantelamento do Estado promovido
por FHC de 1994 a 2002 no Brasil.
A ascensão de Lula da Silva parece ter representado para o verdadeiro
poder real de direita, que as chamadas Organizações Globo encarnam hoje
no Brasil, a emergência de um contraditório, uma contrafação da imagem
que esse sistema de comunicação deseja forjar do país. Neste sentido, as
eleições de 2010 vêm adquirindo um caráter plebiscitário de escolha
entre um Brasil real, verdadeiramente mestiço como observa João Ubaldo
Ribeiro, e um país falsificado, edulcorado, semelhante aos galãs de
novela, aos empresários salvadores da pátria e aos tecnocratas de
linguagem complicada e inócua.
Por outro lado, como manteve a mesma política do governo anterior, Lula
não mudou as estruturas sociais do país, continuou a subordinação da
nossa economia ao capital estrangeiro, chegando a manter na presidência
do Banco Central um verdadeiro operador do sistema, privilegiou os
bancos e as altas taxas de juros e comprometeu a possibilidade de uma
reforma agrária mais ampla ao estimular o agronegócio visando angariar
divisas com a exportação. Embora a propaganda oficial anuncie grandes
obras em andamento, seus efeitos – com a exceção da oferta temporária de
empregos – ainda não produziram uma real mudança na sociedade.
O que é que realmente tanto diferencia o atual presidente das nossas
tradicionais elites se suas políticas econômicas são tão semelhantes?
Seria apenas uma questão de estilo, de diferentes arquétipos? De um
lado, a postura tradicional do galã das novelas da Globo tipificado no
protótipo encarnado hoje pelo ex-governador de Minas Gerais, Aécio
Neves, e representado no passado pelo destronado Fernando Collor e, de
outra parte, o modelo mais autenticamente brasileiro do homem de baixa
estatura, com acentuada origem nordestina, que com seu linguajar simples
e direto revela o amplo desejo que as classes mais desfavorecidas deste
país têm de ocupar um lugar de destaque na construção da nossa
sociedade.
Após sair da imensa letargia em que o governo de Fernando Henrique
Cardoso mergulhou o país, o povo brasileiro se deparou com um presidente
que representava – quando não em sua essência – ao menos na aparência o
oposto do seu precedente, e essa imagem foi imediatamente percebida pela
população como muito mais próxima do Brasil real. Em sua condição de
político perspicaz e inteligente, Luís Inácio da Silva soube tirar um
imenso proveito dessa clara identificação, conseguindo eludir com grande
habilidade as mais difíceis crises políticas até emergir às vésperas das
eleições de 2010 como a verdadeira encarnação das mais profundas
aspirações de ascensão social e econômica do povo. Como as eleições
representam o único momento na história do nosso país em que as camadas
mais baixas da população são minimamente levadas em consideração, seu
imenso respaldo popular pode fazer uma grande diferença.
Se essa mudança de parâmetro, se a emergência de um novo arquétipo
popular levar a um maior esclarecimento das classes mais baixas, fazendo
com que abandonem a imobilidade a que foram confinadas em seus reduzidos
espaços domésticos imposta pelo torpor ilusório das telenovelas, das
mentiras e falsificações dos jornais da noite, das pegadinhas dos
programas de auditório e assumam a consciência do seu verdadeiro papel
histórico, aí então teremos o início do processo de transformação no
Brasil, que foi brutalmente interrompido com o golpe militar de 1964.
Nesse momento poderemos então dar o salto qualitativo em direção à
condição de uma grande potência habitada por cidadãos qualificados, que
sempre representou a verdadeira aspiração da nação brasileira.
No imaginário popular, o destino dos ex-presidentes Getúlio Vargas,
Juscelino Kubitschek e João Goulart sempre foi identificado à sua luta
pelos menos favorecidos. Ao assumir o primeiro plano na campanha
eleitoral e vincular de forma dramática o seu governo a esses ícones do
povo, Lula pareceu compreender claramente essa questão que hoje perpassa
os corações e mentes dos brasileiros, quando afirmou em recente
comício:
– Quando a direita raivosa, quando a direita com ódio, a mesma direita
que articulou e levou Getúlio Vargas a dar um tiro no coração, que levou
o João Goulart a renunciar, a mesma que disse que Juscelino não podia
ganhar e se ganhasse não podia tomar posse…
Consciente de que as elites reacionárias do país querem se apoderar das
benesses geradas pela sua política econômica, dos frutos das gigantescas
jazidas de petróleo e gás há pouco descobertas para a sua privatização e
entrega ao capital estrangeiro, e da estabilidade da situação política e
econômica brasileira, Lula conclamou a participação popular nas atuais
eleições – ameaçada também pelos expedientes da legislação – lembrando
episódios da história recente:
– Essa mesma direita tentou fazer
o mesmo comigo em 2005 e não fez. Eu tinha um ingrediente a mais. Eu
tinha vocês. Eles nunca tinham lidado com um presidente da República que
tinha nascido no berço da classe operária…
Por sua vez, a candidata Dilma Rousseff observou que “em 2002, eles
diziam que não tínhamos competência para governar. Hoje, podemos falar
que um metalúrgico foi capaz de fazer mais escola técnica do que os
doutores que vieram antes”.
De forma contínua, o candidato José Serra e seu vice, um político menor
sem nenhum escrúpulo, vem proclamando que – a despeito de amplas
evidências e todas as indicações das mais diferentes pesquisas – o dia 3
de outubro representará uma realidade completamente nova para o país.
Abandonados pelos próprios companheiros, rejeitados pela opinião pública
e até mesmo desmoralizados em algumas instâncias, como é que eles
pretendem mudar esta situação?
Sérvulo Siqueira |