19 de setembro de 2018

 

Fernando Haddad: Héctor Cámpora ou Juan María Bordaberry?

 

A América Latina, que também foi chamada de América Latrina durante o tempo em que se transformou na lata de lixo dos Estados Unidos, provavelmente já passou por momentos semelhantes a estes que estamos agora vivendo no Brasil.

Quando em 1972, a ditadura argentina convocou eleições como um meio de escapar à uma violenta confrontação social mas impediu a participação de Juan Domingo Perón que estava no exílio e havia sido por cerca de 30 anos o mais importante líder político do país, o dirigente justicialista Héctor Cámpora se elegeu Presidente da República com o lema “Cámpora no governo, Perón no poder”.

Durante seu breve governo de menos de dois meses, propôs um pacto social entre sindicatos e empresários que sustentou seu programa de industrialização, adotou uma política internacional voltada para a defesa dos países do Terceiro Mundo, estabeleceu uma aliança com o movimento estudantil e fortaleceu as universidades. Alcançou grande repercussão também a medida de abrir as prisões e libertar todos os prisioneiros – políticos ou não – que haviam sido encarcerados pela ditadura.

Com a renúncia de Cámpora e o retorno de Perón, sucederam-se novas eleições que deram a vitória ao velho líder que entretanto permaneceu por um breve tempo no poder, vindo a falecer no ano seguinte. Foi sucedido por sua mulher Maria Estela Martínez de Perón, conhecida como Isabelita, que governou até 1976, quando foi deposta por um novo golpe militar.

O retorno de Perón à Argentina, em 20 de junho de 1973, protagonizou o que ficou conhecido como o massacre de Ezeiza, nome do aeroporto de Buenos Aires, em que grupos peronistas de esquerda e de direita trocaram tiros entre si, o que resultou em várias vítimas de ambos os lados.

Por sua vez, Juan María Bordaberry era um membro da aristocracia rural do Uruguai e quando chamado a cumprir o papel de representante da oligarquia no governo durante os anos 1970 tornou-se um títere dos militares, que efetivamente governavam o país. Durante seu governo, Bordaberry suspendeu as garantias constitucionais dos cidadãos, fechou inúmeros sindicatos e prendeu líderes da oposição, causando a morte de muitos deles. De 1973 até 1976, converteu-se em um ditador civil à frente de um governo composto em grande parte por membros das forças armadas do Uruguai.

No Brasil de hoje, em que o candidato franco favorito para ganhar as eleições está proibido de concorrer e se encontra preso – acusado de um crime que não foi comprovado até hoje − e onde começam a crescer as ameaças de intervenção anunciadas por chefes militares, é legítimo questionar qual é o papel que poderá vir a desempenhar Fernando Haddad, que acaba de ser designado como substituto de Lula para a candidatura à presidência da República.

O que é que se pode esperar de um político fraco e sem grande expressão eleitoral, que há dois anos sequer chegou ao segundo turno nas eleições para prefeito de São Paulo, cidade que ele já havia administrado por quase quatro anos? O que teria levado os eleitores a não reconduzi-lo ao cargo?

Estaremos diante de um novo Héctor Cámpora, com um sub-reptício slogan de “Haddad no governo, Lula no poder”? Teria Haddad força suficiente para enfrentar os milicos que já afirmam abertamente que não pretendem aceitar a volta do PT ao governo?

Em seu currículo de professor universitário, ministro da Educação e prefeito da maior cidade do país, quais são os predicados de sabedoria política e sensibilidade diante das manifestações populares que Haddad poderia apresentar? Quais as explicações que o chamado poste de Lula – que muitos consideram não dispor de luminosidade própria – oferece para sua contundente derrota diante do lobista João Dória na periferia de São Paulo, quando se apresentava como um candidato de feição eminentemente popular e representando um partido que se proclama ser de esquerda?

Uma grande parcela do eleitorado, sobretudo aquela que expressa uma clara rejeição ao seu nome, já levanta a hipótese que poderá vir a se repetir um fenômeno semelhante ao ocorrido com Dilma Rousseff que, tampouco, demonstrou possuir uma luz própria no exercício da presidência que recebeu – quase como uma herança – de Lula, em uma época na qual o acirramento dos conflitos no país ainda não havia se acentuado como hoje. Enfim, quem é que pode prever o que fará Fernando Haddad quando estiver diante de um pronunciamiento militar?

Outros poderão argumentar que estas são previsões catastróficas e que – ungido pelo apoio popular e conduzido por uma vitória esmagadora legada por seu patrocinador – Haddad saberá enfrentar os desafios impostos ao exercício de seu poder. No entanto, com seu physique du rôle de tecnocrata de gabinete e uma linha de conduta com matizes neoliberais sua reação tende a ser bem diversa e – guindado por um instinto de sobrevivência natural na política e bem característico do partido que representa − ele poderá se compor com adversários, aceitando restrições a seu programa de governo.

Desde a ascensão de Barack Obama e de Alexis Tsipras, um jovem político líder do Syriza, movimento de Esquerda Radical grega, sabe-se como é que um candidato pode chegar ao poder pela esquerda e se tornar em seguida um defensor do sistema que dizia combater. Barack Hussein Obama, por exemplo, elegeu-se com o slogan Change (Mudança) e no poder converteu-se no mais belicoso presidente de toda a história dos Estados Unidos.

Eleito pela esquerda com uma ampla maioria e tendo que enfrentar uma gigantesca crise econômica e financeira, Tsipras  decidiu ignorar o resultado do referendo em que 61,31% dos eleitores haviam dito "não" e 38,69% respondido "sim". A consulta popular realizada em 2015, que teve uma participação de 62,5% da população, buscava alcançar o apoio da população para evitar uma série de medidas que terminaram por destruir a economia da Grécia. Hoje, Tsipras é uma figura patética no contexto da União Europeia e mais parece um síndico da massa falida de seu país, cujo patrimônio já foi quase todo entregue ao capital estrangeiro, especialmente à Alemanha e à França.  

Juan María Bordaberry nunca esteve ligado à esquerda mas como presidente e, mais tarde, como ditador do Uruguai curvou-se diante do poder real do país, o estamento militar que naquele momento combatia a crescente influência política do movimento dos Tupamaros,  nome de uma organização que homenageia o inca Túpac Amaru II, líder da última grande rebelião indígena, executado pelos espanhóis em 1781. Durante muitos anos, o movimento dos Tupamaros se transformou em um dos mais importantes grupos de guerrilha urbana da América Latina, com ações espetaculares como a distribuição de comida e dinheiro aos pobres de Montevidéu e depois da redemocratização chegou a eleger José Mujica, um de seus membros, como Presidente da República em 2009.

Qual será o futuro de Fernando Haddad se for eleito o novo presidente da República? Dada a pouca legitimidade que desfrutará, uma vez que terá sido eleito por influência direta de Luís Inácio da Silva, tornar-se-á então uma espécie de Héctor Cámpora, que facilitará o retorno de Lula à vida pública? Uma vez que esta é uma tarefa extremamente difícil, em razão dos obstáculos que deverá enfrentar, é pouco provável que isto aconteça.

De outra parte, é certo que enfrentará enormes resistências tanto do estamento militar quanto das elites mais poderosas deste país para implementar um projeto econômico que recompense as aspirações dos setores mais desfavorecidos que o beneficiaram com seu voto e que poderão – à semelhança do que ocorre na Venezuela – criar um clima propício ao desfecho de uma guerra civil conveniente em última instância aos objetivos imperiais dos Estados Unidos, interessados como sempre em se apossar das vastas riquezas destas nações.

No entanto, há também o risco de que – em decorrência da própria fragilidade política do PT e da necessidade de alianças que apresenta para o exercício do poder – um futuro governo Haddad possa vir a se tornar refém da mesma situação que levou ao desgoverno de Dilma Rousseff e à sua subsequente queda. Se isto vier a ocorrer, somente restará ao novo governo se render à pressão de seus adversários, isto caso eles aceitem uma composição política e não se decidam por um novo processo de impeachment.

A insistência do PT em se manter no poder e sua recusa em compartilhar a liderança dos movimentos populares com outras agremiações podem conduzir o Brasil a um caminho sem volta à beira do precipício.

Por outro lado, o recurso às pesquisas de opinião pública como um meio para estimular o voto útil − uma velha prática na política brasileira – tende a desfavorecer um candidato mais qualificado e com melhores propostas como Ciro Gomes e a levar um político cuja trajetória não transmite a menor confiança ao segundo turno para o embate com o dinossauro fascista, no momento insuflado pela comoção popular.

Se isto ocorrer, poderemos ter uma repetição das eleições de 1989, quando Lula ultrapassou Brizola nos últimos dias da campanha e aí todos sabem o que aconteceu.

 

Sérvulo Siqueira