Representação, palavra, som e imagens do mundo do sertão

 

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Muitos supõem que o arsenal dos meios técnicos de reprodução do som e da imagem não dispõe de recursos suficientes para apreender e traduzir a imensa riqueza de inventividade de linguagem e fabulação contida nos diferentes níveis de discurso de autores como Proust, Joyce, Faulkner, que construíram grandes arquiteturas literárias no século XX.

Nascido em meio aos eflúvios dos conceitos de teóricos defensores de uma arte pura, meramente dedicada à exposição da imagem, o cinema – ao longo de sua trajetória de mais de um século – se alimentou de toda a sorte de recursos plásticos, sonoros, dramáticos, literários provenientes da pintura, da música, do teatro, da literatura, da arquitetura, o que levou alguns a vê-lo como uma espécie de síntese das artes, proposta que foi consumada em produções como Ivan, o Terrível, por exemplo.

Por outro lado, contemporâneo dos grandes movimentos de vanguarda do século, as artes clássicas encontraram no cinema a sua mais bem acabada representação em movimento, como atestam inúmeras obras que seria exaustivo enumerar aqui e entre as quais sobressai de forma tonitroante a poesia e o teatro de William Shakespeare.

Entre todas as relações da arte cinematográfica com outras formas de expressão, pode-se dizer que a literatura é uma das que – sobretudo nas suas formas mais ousadas do monólogo interior e das complexas figuras de linguagem – apresenta maiores dificuldades de adaptação para o audiovisual.

Como o anelo do cinema puro não permaneceu por muito tempo, restou aos criadores cinematográficos haurir-se de suas próprias idéias ou se socorrerem no vasto roteiro da cultura da humanidade. Considerando que a imagem por si só não bastava – eram necessários a trama e o enredo para dar sentido à forma - a história do cinema mostra como esta linguagem sorveu nas mais diversas formas da expressão ficcional contida nos contos, novelas e romances – especialmente das histórias policiais – estimulada pelo gosto popular do mistério, das reviravoltas dramáticas e das peripécias da investigação.

Na chamada 7ª Arte, o princípio do digesto, adaptação que privilegia os elementos meramente episódicos para favorecer a compreensão anedótica da narrativa criou um cinema estereotipado apoiado na estrutura arquetípica do começo-meio-fim. Nenhuma outra grande escola cinematográfica desenvolveu e aprimorou tão bem este conceito como a americana.

O cinema latino-americano – em grande parte tributário deste legado – ainda não se apercebeu do imenso repositório de criação ficcional que possui em seu acervo histórico e prefere repetir velhas fórmulas de filmes policiais e comédias de costumes da metrópole. Autores como Miguel Angel Astúrias, Jorge Luís Borges, Augusto Roa Bastos, Julio Cortazar, José Maria Arguedas, entre outros, tiveram esparsas representações cinematográficas, incapazes de dar conta da imensa complexidade de sua obra.

A simplificação da narrativa cinematográfica levou estudiosos a perguntar se esta linguagem seria infensa à renovação da linguagem ou comportaria limitações que a impossibilitariam de compreender outros níveis de discurso que não os da mera representação visual das idéias. Visto sob o prisma estandardizado do show-business, pode-se dizer que estamos diante de um veículo mais propício à exteriorização das emoções, uma forma mais adequada de representação da psicologia comportamental. Sua expressão clássica é a célebre definição de Samuel Fuller em Pierrot Le Fou (O Demônio das Onze Horas) de Jean-Luc Godard:

– Movie is battleground. Love, hate. In one word: emotion. (O cinema é um campo de batalha. Amor, ódio. Em uma palavra: emoção).

No final dos anos 60, Roberto Rossellini dizia que o cinema havia encontrado uma nova forma de expressão mas carecia de bons argumentos. Foi o próprio Rossellini, um dos grandes inventores do cinema moderno, quem se encaminhou para a filosofia com seus ensaios cinematográficos sobre Sócrates, Descartes, Pascal. Ainda dentro da grande tradição do cinema italiano dos anos 60 e 70, Marco Ferreri filmou o Banquete de Platão enquanto Pier Paolo Pasolini, poeta, romancista, roteirista, ator e diretor de cinema, explorava a tradição da tragédia grega (Édipo Rei, Medéia) e da narrativa clássica de ficção (Decamerão, Contos de Canterbury, As Mil e Uma Noites, Saló ou os 120 Dias de Sodoma).

O cinema do final do século passado pareceu abandonar este caminho mas um dos seus grandes inovadores o cineasta dinamarquês Lars von Trier – foi encontrar nas técnicas do psicodrama e no teatro brechtiano de distanciamento dramático uma fonte de inspiração para seus filmes.

No caso brasileiro, a obra de Guimarães Rosa, imenso manancial para a compreensão das peculiaridades do nosso modo de falar, pensar e agir, verdadeiro repositório do saber acumulado pela cultura brasileira que incorpora as mais diversas tradições: os costumes e as crenças africanas, a sabedora ancestral indígena e as diferentes contribuições européias e asiáticas, continua a desafiar sua adaptação para o cinema. Ainda que isto tenha sido efetivamente tentado, o nosso cinema somente foi capaz de produzir eventuais ectoplasmas da obra roseana em alguns filmes de Glauber Rocha e de Carlos Prates Correia.

Mesmo continuando a representar um verdadeiro enigma a ser decifrado, sua contribuição não se perdeu ao revés da nossa crônica falta de memória e se preserva como um tesouro pouco conhecido.

Doralda, título da leitura dramática adaptada por Cristiano Mota e Jacyara de Carvalho da novela Dão-Lalalão do Corpo de Baile de João Guimarães Rosa procura preservar aquilo que Oswaldino Marques chamou de canto e plumagem das palavras, a prosódia e os prosoemas da rica fabulação deste escritor único. Sua perspectiva consiste em desdobrar a narração do personagem de Soropita nas três Doraldas (Stefania Corteletti, Jacyara de Carvalho, Samyta Nunes) que povoam a sua imaginação, representação dos vários nomes e facetas da mulher amada : Dola, Dadã, Sucena, Doralda.

Em um outro nível, a transposição para o espaço teatral também expõe a estrutura social paternalista e patriarcal onde vigem Soropita (Cristiano Mota), boiadeiro portador de muitas história de temeridade e bravura agora posto em sossego no povoado do Ão e Doralda, outrora mulher-dama de vida airada, objeto de um desejo passional de Soropita, hoje dedicada aos cuidados do lar e à retribuição de seu afeto.

O manto da natureza – a concha do céu, o gado nos pastos, o milho maduro, o gavião e a juriti jururu, os marimbondos e as borboletas – e o arruado do Ão – sempre à espera da chegada de Soropita, que traz o relato oral dos últimos capítulos da novela do rádio – são o pano de fundo onde decorre esta estória de amor embalada no ritmo de uma estrofe algo repetitiva (Lão-Dalalão/Dão Lalalão), caracterizada no título de sabor onomatopaico e quase monocórdio.

Neste pequeno mundo determinado por relações de poder e quase vassalagem, permeado pelas ondas do rádio com suas canções de cabaré carregadas de dores de amor, encontramos os personagem de Soropita, que rompeu as rígidas relações e ascendeu degraus na escala social embora ainda se mostre preso a esse sistema e sua mulher, personagem pouco convencional que – mesmo devotada ao marido se comporta como uma mulher livre. Nas relações entre os dois revela-se o processo dinâmico e dialético da sociedade  – o senhor se assusta com a liberdade do dominado e o poder se torna dependente daquele que o serve – o que poderia levar à uma mudança e transformação. Marcado por uma má consciência, um sentimento de culpa não resgatada, a única saída que Soropita encontra para a recuperação da dignidade intrinsecamente perdida é submeter um outro, supostamente mais fraco, à mesma humilhação que sente.

O registro documental em vídeo, realizado no formato panorâmico 16:9 em um único plano-sequência de 42 minutos, procurou respeitar a relação de espaço-tempo proposta pela leitura dramática. (25/02/10)

 

Sérvulo Siqueira

Veja também: Doralda: leitura dramática de Dão-Dalalão de João Guimarães Rosa