27 de janeiro de 2019
Piratas com armas atômicas atacam a Venezuela
Entre as mais de duas centenas de
golpes de Estado já perpetrados ou tentados na América Latina, este foi
um dos mais bizarros.
Aparentemente, tudo foi muito bem
planejado e executado: a tentativa de roubo de armas na madrugada da
última segunda-feira por um grupo de integrantes da Guarda Nacional
Bolivariana, sucedida por focos de violência no oeste de Caracas; o
discurso de Mike Pence oferecendo a benção dos Estados Unidos a Juan
Guaidó como “presidente interino” autoproclamado; a convocação da
mobilização popular de 23 de janeiro; a juramentação de Guaidó e, em
seguida, o twitter de Trump reconhecendo o seu governo; o aumento da
violência organizada contra bens públicos e partidários do governo
constitucional de Maduro; a reunião da Organização dos Estados
Americanos (OEA) programada para reconhecer o novo governo e, enfim, a
“ajuda humanitária” de míseros 20 milhões de dólares oferecida ao povo
venezuelano, ao mesmo tempo em que persistia a violência organizada nas
ruas.
Nem tudo, entretanto, saiu como
tinha sido programado. A OEA não ofereceu legitimidade ao “governo” de
Guaidó e o apoio do Grupo de Lima ficou enfraquecido com a recusa do
México em participar da conspiração. Por sua vez, o verdadeiro promotor
do golpe, o governo de Donald Trump – já abalado por uma sucessão de
crises internas e sob a ameaça de sofrer um processo de
impeachment − começou a
retirar seu pessoal da embaixada e provavelmente será obrigado a aceitar
a ruptura de relações com a Venezuela.
Ao mesmo tempo, a farsa de Guaidó
começou a ser progressivamente desmontada depois que a exibição de um
vídeo nos meios de comunicação desmentiu a sua afirmação de que não
havia se reunido com Diosdado Cabello, ao mostrá-lo, sob o disfarce de
um capuz, entrando para uma reunião com o presidente da Assembleia
Nacional Constituinte. Seus soturnos planos para o povo da Venezuela
também vieram à tona com a revelação de que pretende entregar a
administração da CITGO, uma
subsidiária da estatal de petróleo venezuelana
PDVSA nos EUA, ao controle
dos norte-americanos.
De outra parte, o apoio recebido
por Maduro da Rússia, da China, da Turquia e de vários países
latino-americanos contrabalançou o reconhecimento de Guaidó por governos
de direita do Cone Sul e da União Europeia. Ao final, só restou ao
presidente “autoproclamado” a disposição golpista de Trump e do
Estado Paralelo americano que
hoje tomou conta de seu governo, assim como os focos de violência
ativados por capatazes da direita venezuelana que já assassinaram até
agora alguns membros das forças de segurança do País.
Quando, no dia de ontem, as
atenções se concentraram na reunião do Conselho de Segurança das Nações
Unidas onde os gringos esperavam obter uma condenação do governo
constitucional de Nicolás Maduro, a Venezuela conseguiu transformar o
país norte-americano de defensor dos direitos humanos em verdadeiro
transgressor da paz mundial. Maduro agradeceu então a Trump a
oportunidade para expor a legitimidade de seu poder neste organismo e o
representante de seu governo pôde deixar claro a ingerência americana em
uma nação soberana e o evidente propósito do golpe de Estado de dominar
um dos países mais ricos do mundo, detentor de imensas reservas minerais
de ferro e ouro e da maior jazida de petróleo do planeta.
Já dizia Eduardo Galeano em seu
As veias abertas da América Latina que “quanto maior a riqueza da
terra, maior a pobreza do homem” e a Venezuela – de forma semelhante a
todos os outros países colonizados do nosso subcontinente – não foge à
regra.
A nação que os Estados Unidos
querem agora mergulhar em uma guerra civil – como fizeram recentemente
com a Síria – foi responsável durante quase todo o século passado por
mais da metade dos lucros obtidos pelas companhias americanas na América
Latina. Já se disse que se toda a riqueza da Venezuela fosse destinada à
sua população, ela aumentaria por dez vezes o bem estar material de cada
um dos habitantes do País.
Foi somente com a eleição de Hugo
Chávez Frias, em 1999, que esta situação começou a mudar mas medidas
econômicas inadequadas e a lentidão do processo não puderam consumar em
seu período de governo de 14 anos a transformação de um do países mais
pobres da região em uma nação economicamente soberana. Com a queda do
preço do petróleo, sua principal fonte de riqueza, e o confisco pelos
Estados Unidos de suas propriedades e reservas monetárias no exterior,
somados ao desabastecimento de gêneros alimentícios e à restrição dos
negócios em dólar – por causa das sanções norte-americanas – a situação
econômica dos venezuelanos se deteriorou nos últimos anos.
Mais uma vez se repete a velha
prática gringa – já aplicada
dezenas de vezes a governos que recusam se submeter ao seu arbítrio – de
fazer com que a população desses países paguem pela independência de
seus governos.
No entanto, toda esta maquinaria
infernal de boicotes, sabotagens, ações terroristas de destruição de
bens públicos, sanções e confisco ilegal de propriedades não impediu que
o governo de Nicolás Maduro – dando prosseguimento ao legado de Hugo
Chávez – alcançasse resultados notáveis em benefícios à população –
especialmente a mais desassistida – do país.
Como um antigo motorista de
ônibus originário das camadas mais humildes da população, Maduro –
embora tenha cometido vários erros em sua política econômica – procurou
privilegiar a assistência de saúde, de tal forma que mais de 60% da
população tem hoje acesso ao tratamento médico gratuito. Neste sentido,
aumentou o salário dos profissionais de saúde de modo que regiões mais
remotas como os departamentos de Amazonas, Bolívar e Delta Amacuro
recebessem uma melhor atenção.
Em razão disso, o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento colocou a Venezuela entre os países
com o mais alto grau de desenvolvimento humano na região. Também de
acordo com a Organização Mundial de Saúde das Nações Unidas, os índices
de mortalidade infantil, doenças do coração e HIV/AIDS diminuíram
consideravelmente no país.
A habitação popular tem sido um
dos pontos chave do governo de Maduro. Com seu projeto de construção de
um milhão e quatrocentas mil moradias populares, a Venezuela é hoje o
segundo país da América Latina com menos desabrigados uma vez que apenas
6, 68% da sua população não dispõe de casa própria.
Em relação à educação, os ganhos
do país são ainda maiores: segundo os dados da ONU, 95,4% dos
venezuelanos estão aptos a ler e escrever, o que confere ao país o mais
alto índice de toda a América Latina. Outro setor em que a Venezuela
alcançou um alto índice de desenvolvimento – ao contrário do nosso
Brazilsão, onde provavelmente
todas estas conquistas serão revertidas pelo governo de ocupação que
acaba de se instalar – refere-se aos direitos das mulheres, das
comunidades indígenas e dos movimentos LGBT. Além da criação do
Ministério das Mulheres e da Igualdade de Gênero, o governo de Maduro
também instituiu o Ministério do Poder Popular dos Povos Indígenas e
centros populares de Cultura Africana.
Talvez o governo bufão de Donald
Trump e seu aliados do Estado
Paralelo – após terem obtido sucesso ao impor um farsante como Jair
Bolsonaro ao Brasil – tenham se deixado envolver por uma inebriante
euforia e, assim, acreditaram que teriam condições de fazer tudo o que
quisessem na América Latina. Escolheram então, como haviam feito aqui,
um medíocre deputado – que, coincidentemente, ostenta um
physique du rôle semelhante a
um partidário de Bolsonaro − o grotesco Kim Kataguiri, que acaba de ser
chamado por um jornalista brasileiro de “pirralho fascista”, para ser
seu serviçal no país andino.
O analista Michel Chossudovsky
comentou a propósito que, ao alegar que o governo de Maduro não tem
legitimidade porque foi eleito em um pleito fraudado, Trump pode estar
também oferecendo ao Partido Democrata de seu país os argumentos para a
interrupção de seu mandato uma vez que – ele próprio – recebeu menos
votos que sua concorrente, Hillary Clinton, nas últimas eleições
presidenciais de 2016. Neste caso, a democrata Nancy Pelosi, presidente
da Câmara dos Deputados dos EUA, poderia também se autoproclamar
presidente e iniciar uma crise institucional no país.
No mundo atual, onde muitos
políticos com passado criminoso ascendem ao poder, conduzidos pela
manipulação de notícias falsas, a cumplicidade dos meios de comunicação,
do Judiciário e o beneplácito de elites sem qualquer escrúpulo, tudo
pode acontecer. O apoio popular de que ainda desfruta o governo de
Maduro e a segurança que lhe é oferecida pelas suas Forças Armadas
tendem a impedir no momento o sucesso de mais este golpe norte-americano
na América Latina.
Por outro lado, fica evidente que
vivemos em uma época em que o espaço político − excessivamente
demonizado nos dias atuais − dá sinais de que vem sendo ocupado, tanto
na metrópole quanto nas colônias da periferia como o Brasil, por pessoas
da mais baixa extração psíquica, moral e intelectual. Chamou a atenção
de todo o mundo que o presidente atual do Brasil não apenas não
conseguisse falar mais do que seis ou sete minutos no Fórum de Davos mas
que ele – igualmente – não dispusesse de assessores com capacidade
suficiente para redigir um discurso em condições de apresentar com
clareza o seu programa de governo.
Da mesma forma, o governo de
Donald Trump – que obviamente não pode contar com o brilho intelectual
de seu comandante – tem como secretário de estado a medíocre figura de
Mark Pompeo, que afirmou recentemente que suas decisões relacionadas à
política externa são ditadas pela leitura da Bíblia Sagrada. Seria o
caso de lhe perguntar se pelo Velho ou o Novo Testamento, já que suas
naturezas são muito diferentes. Um é nitidamente belicista e o outro
apoia claramente a pregação de amor e fraternidade entre os homens
proposta pela figura de Jesus Cristo.
A guerra de baixa intensidade a
que estamos acostumados em nossos países – com a retirada de direitos
adquiridos, a exploração do trabalho e a má remuneração, a apropriação
do dinheiro público, a intimidação da população por milícias organizadas
a serviço dos mais poderosos e o horror de uma sociedade altamente
injusta − tudo isto, enfim, deverá continuar até que os princípios das
Revoluções Francesas, de ontem e de hoje, cheguem um dia à nossa região.
Sérvulo Siqueira
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