27 de outubro de 2008 


A vida sequestrada


 
A imagem ainda está muito viva na memória, apesar do longo tempo decorrido: numa noite fria do Natal de 1991, uma limusine russa corta as ruas de Moscou levando Mikhail Gorbatchev, o presidente que havia renunciado, de volta para casa. Depois de quase 70 anos, estava dissolvida a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Surgia a Comunidade de Estados Independentes, uma ficção política e jurídica e o “império do mal”, como foi chamado por Ronald Reagan, se tornava da noite para o dia um país capitalista.

 

Na artificial atmosfera feérica que se sucedeu, tudo parecia nascido de um conto de fadas moderno. O regime do livre mercado, da liberdade de iniciativa, das instituições democráticas havia derrotado o sistema da ditadura do proletariado, dos gulags, da economia controlada e da liberdade cerceada. Muitos arriscavam dizer que essa vitória do bem contra o mal seria para sempre. Apareceu até mesmo um professor universitário que produziu um paper em que previa o “fim da história” pois, como dizia, com o triunfo do neoliberalismo o futuro apontaria apenas em uma única direção.

 

E, de fato, as miríades anunciadas pelos amestrados meios de comunicação convidavam-nos a pensar que o futuro seria radioso. Uma vez que a sociedade capitalista democrática de livre comércio havia provado a sua flagrante superioridade sobre o sistema socialista de economia centralizada, todos os países do planeta deveriam ter o bom senso de adotar o modelo vitorioso, extinguir os monopólios estatais de serviços, abrir as economias e entregar as suas riquezas à administração privada, para que o princípio autorregulador do mercado pudesse finalmente impor o equilíbrio necessário entre a oferta e a demanda.

 

Tudo, então, parecia nos encher de uma grande expectativa e esperança: afinal, depois de tantos percalços e sacrifícios, o homem havia chegado a um estágio superior em que – dotado de uma capacidade política muito mais elevada e sem ser constrangido a optar entre dois modelos antagônicos – estava em condições de organizar um grande concerto entre os povos e as nações. Certamente ainda subsistiam bolsões de resistência como Cuba, mas os líderes vitoriosos nos garantiam que eles desapareceriam com o tempo.

 

O Brasil, um país onde a elite dominante sempre gostou de se mostrar atualizada e em dia com os últimos avanços, tratou logo de fazer a sua parte. Constantemente à espreita de uma oportunidade para tirar proveito da situação, as oligarquias do nosso Bananão perceberam na mudança a possibilidade de fazer um bom negócio vendendo os bens que o Estado havia acumulado à custa do sacrifício do povo brasileiro e assim concretizar uma aliança subserviente com o capital vitorioso, obtendo de quebra um lucro com a negociação do patrimônio da nação.

 

Todos conhecemos a soturna história da vitória de Fernando Collor em 1989 e dos inúmeros ardis e golpes baixos que a cercaram, desde os rompantes de falso caçador de marajás à sua associação com a Rede Globo de Televisão, as fraudes perpetradas na campanha eleitoral e nos debates, a encenação dos sequestros do segundo turno, o lock-out das empresas de ônibus no dia da votação decisiva e, por fim, o mistério que envolveu a sua vitória e administração.

 

No final das contas, o seu (des)governo foi o que menos interessou já que as medidas que eram necessárias e aquelas que o capital reclamava foram todas tomadas: privatização das siderúrgicas, um intenso processo de desregulamentação do governo e de entrega de atividades sob o controle do Estado ao capital privado, sem falar no terremoto político e econômico que provocou ao assumir o Poder, com o congelamento dos depósitos das contas correntes e de poupança. Ao paralisar de um só golpe toda a vida econômica do país, Fernando Collor abriu na verdade o caminho para uma avassaladora desnacionalização do sistema produtivo da nação.

 

Tudo isto se fez, é claro, sob o arauto trombeteado pelos meios de comunicação de massa de que a desregulamentação em curso traria uma grande melhoria da capacidade produtiva do país, o que nos guindaria por certo e em pouco tempo ao Primeiro Mundo. Nossos carros, alardeavam, eram então carroças mas brevemente e sob a ação enérgica do nosso presidente, teríamos acesso aos melhores produtos da indústria automobilística.

 

Como sabemos, o governo eleito que o sucedeu foi ainda mais longe no processo de desnacionalização das riquezas do país e o fato de praticamente não ter sido contestado por oito longos anos tornou o seu legado muito mais pesado, a “herança maldita” referida por alguns. Respaldado pela ampla vitória eleitoral obtida em 1994, ainda no primeiro turno, Fernando Henrique Cardoso aprofundou o modelo neoliberal ao esquartejar o Estado brasileiro e colocá-lo quase que integralmente nas mãos do capital estrangeiro. Dispondo de uma ampla maioria no Congresso, pleiteou e obteve de forma ilegal a reeleição e as emendas constitucionais que permitiram a reforma do Estado e proporcionaram ainda maiores lucros ao capital privado, que se apropriou de todo o sistema de comunicações, de quase todo o setor elétrico, da malha ferroviária, da Vale do Rio Doce e da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), num processo que esvaziou a economia brasileira a ponto de gerar uma redução no Produto Interno Bruto (PIB) da ordem de um terço, o que representou uma perda na riqueza do país de aproximadamente 300 bilhões de dólares ao ano.

 

Ao preparar todas essas empresas para a sua privatização, o governo de FHC – seguindo os ditames do Consenso de Washington – submeteu-as a um processo de saneamento, demitindo milhares de trabalhadores para livrar os novos proprietários de futuros encargos sociais. Esse procedimento se estendeu a todos os setores privatizados, inclusive ao sistema bancário brasileiro, cujo setor estatal foi devidamente enxugado para que pudesse ser entregue aos banqueiros nacionais e internacionais expurgado dos inconvenientes e insubmissos funcionários, que foram substituídos por máquinas. Durante esse curso, centenas de milhares de bancários, securitários, ferroviários, além da mais variada mão de obra, foram postos no olho da rua para viabilizar preços mais baratos aos pretensos compradores, que sequer chegavam a despender qualquer quantia em dinheiro uma vez que todas as operações se fizeram por meio de generosos financiamentos que, em muitos casos, nunca foram pagos.

 

A eleição de Luís Inácio da Silva em 2002 representou uma espe-rança para milhões de brasileiros mas infelizmente tudo se desvaneceu um pouco antes da posse quando o presidente eleito indicou para o posto de xerife do cofre-forte da União, a presidência do Banco Central, um antigo presidente mundial do Banco de Boston, notório por seus crimes de lavagem de dinheiro e sonegação de impostos.

 

Pouco a pouco as expectativas foram se frustrando, desde o aumento do superávit primário, a persistência de altíssimas taxas de juros que produziram uma assustadora dívida pública e um escandaloso enriquecimento dos banqueiros, a nova reforma da Previdência – que precipitou a discordância da senadora Heloísa Helena e sua truculenta expulsão do partido –, a lei de falências, o projeto das parcerias público-privadas (que recebeu um nome mais irônico no comentário popular), o estatuto de intocável outorgado ao presidente do Banco Central para tentar preservá-lo contra acusações de crimes de colarinho branco, entre muitos outros fatos, culminando no envolvimento de toda a máquina governamental em flagrantes casos de corrupção que levaram à cassação do seu principal operador político, o ex-deputado José Dirceu.

 

Quando se previa um completo afundamento do aparato partidário e do sistema de governo, viu-se que Luís Inácio da Silva ainda tinha uma carta, que se revelou providencial e oportuna e possibilitou a sua reeleição. O programa Bolsa Família, uma herança do Bolsa Escola, fez escorrer uns poucos trocados para o bolso de milhões de brasileiros desamparados e se transformou no carro-chefe do governo, alimentando mais uma vez a convicção de que a nossas sucessivas administrações públicas jamais apresentaram um verdadeiro projeto social ao país mas, sim, meros programas assistencialistas e clientelistas.

 

Não se pode dizer – apesar do porte gigantesco do programa, que só tem equivalente no tamanho da nossa miséria – que ele tenha oferecido a mais remota possibilidade de solução para a imensa crise social brasileira mas, no entanto, é absolutamente certo que preservou a presidência para Luís Inácio da Silva por mais quatro anos.

 

Assegurado o poder e ao menos postergado por algum tempo um processo de convulsão social que perturbasse os negócios, tudo parecia ter retomado o curso natural, com os grandes bancos, como o Itaú e o Bradesco, postando a cada trimestre lucros da ordem de mais de um bilhão de reais, a economia inteiramente oligopolizada, os serviços públicos como luz, telefone, gás e transportes nas mãos de cartéis, o que por si só já bastava para assegurar o apoio dos grandes capitalistas ao sistema vigente e a perspectiva de reinar por mais algum tempo, fazer o seu sucessor ou até mesmo obter uma nova reeleição para o presidente. Foi então que o mandatário populista sacou mais uma carta da sua cartola presidencial, ao acenar com a política energética do etanol como uma grande alternativa para a crise mundial do petróleo. Embora essa proposta ainda não tenha se transformado em um grande sucesso, ela serviu para despertar a atenção de investidores nacionais e estrangeiros e alimentar a cobiça por lucros fáceis, decorrentes da compra de vastas extensões de terras e da exploração de mão de obra barata num país onde os direitos sociais ainda continuam sendo uma questão de polícia.

 

A crise financeira das hipotecas nos bancos americanos explode num momento de aparente calmaria para os atuais detentores do poder no Brasil, com a popularidade do presidente em alta e a enorme tensão social sob controle – ainda que em parte pela ação da polícia, que hoje ostenta recordes de violação de direitos humanos – mas seus desdobramentos ameaçam criar uma vertiginosa crise econômica para todo o capitalismo neoliberal, já que de seu epicentro nas bolsas, onde as ações são negociadas, ela tende a se alastrar para o sistema produtivo, comprometendo os empregos e o consumo.

 

Subitamente, o gigantesco edifício do sistema financeiro capitalista começa a ruir, desfazendo a crença alimentada por quase duas décadas em sua estabilidade e segurança. A infalibilidade do deus-mercado e a lógica inequívoca do capitalismo de livre empresa representadas pelas Bolsas de Valores já não parece tão sólida, mostrando que sua capacidade autorreguladora na verdade não existe e que – quando deixado à sua própria sorte – o velho capitalismo não é nada mais do que uma atividade extremamente predatória e destrutiva. À propósito, Michel Chossudovsky, um dos grandes analistas da globalização, diz que de cada dez dólares que existem no mercado apenas um único dólar cria prosperidade. A imensa abundância de capital especulativo não foi capaz de distribuir riqueza, ao contrário, acentuou a disparidade de renda ao se concentrar nos paraísos fiscais – dos quais o Brasil é hoje um dos que melhor o remunera – e privilegiar os investimentos de curto prazo sem caráter produtivo.

 

Os resultados obtidos mostram um completo fracasso do modelo neoliberal. No entanto, por ter se apoderado do aparelho estatal e o colocado a seu serviço, o capitalismo financeiro ainda está longe de se considerar derrotado. Ao longo dos quase vinte anos que decorreram desde a queda da União Soviética e do socialismo real, o processo de rapina e pilhagem operado sobre o cidadão e os Estados nacionais foi capaz de produzir uma acumulação de capital de tal ordem que o modelo neoliberal detém hoje um poder absolutamente incontrastável em todo o planeta. Esse poder é na verdade tão grande que é efetivamente maior do que o próprio local de onde ele se originou, os Estados Unidos da América. Com sua política de mercados livres e desregulados, capitalismo off-shore, mecanismos que facilitam a lavagem de dinheiro e migração de capitais, criação de hedge funds sem nenhum controle, mercados de derivativos, emissão de papéis sem lastro e especulação desenfreada, o capitalismo neoliberal norte-americano criou as condições para a sua erosão, que hoje assume a forma de um imenso buraco negro e ameaça mergulhar a humanidade numa crise sem precedentes.

 

Confrontado com a abissal estupidez e inconsequência inerente à sua própria natureza, causada pela mais absoluta ganância e avidez, esse capitalismo financeiro ameaça agora exercer chantagem sobre a sociedade. Da mesma forma, como haviam feito há pouco quando ameaçaram condenar o mundo e especialmente os países pobres à fome e à ausência de alimentos, os grandes oligopólios insinuam com a possibilidade de uma paralisação da atividade econômica, demissões e desemprego, caos e convulsão social, caso não sejam compensados por prejuízos a que foram levados pela natureza fria e meramente concupiscente da atividade a que se dedicam. No limite da ruína, os notórios banqueiros – verdadeiros sanguessugas e parasitas do processo produtivo – anunciam que a iminente falência do sistema pode levar à bancarrota toda a economia e exigem compensações cada vez maiores para continuar operando. Impõem assim um verdadeiro estado de sítio psicológico à sociedade, obrigando-a a sustentar com imensas verbas um sistema parasitário, sob pena de mergulhar na profunda ruína. Por sua vez, o Estado – dominado e colocado a serviço da elite financeira – tende a se submeter docilmente a essa coação. Lembre-se que o Secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, – que hoje, como se diz, governa de fato os Estados Unidos – foi o principal executivo do banco de investimentos Goldman Sachs, um dos artífices determinantes dessa crise.

 

Depois do tenebroso 11 de Setembro de 2001, o mundo vive uma atmosfera permeada pelas maiores brutalidades, especialmente aquelas praticadas pela última grande potência ainda existente. As agressões cometidas contra o Afeganistão e o Iraque, aparentemente em represália a um ato cuja autoria nunca foi devidamente comprovada, a exibição de uma tecnologia de armas de destruição e seu uso claramente des-proporcional, a institucionalização de um estado policial de fato e de direito nos Estados Unidos da América, o controle da informação em todas as suas latitudes, as políticas de viés racista praticadas pelo Estado americano, a União Européia e o Japão contra cidadãos do Terceiro Mundo, os chips inseridos em cartões de crédito, passaportes, cartões de identificação, roupas e outros objetos – na maioria dos casos sem a concordância explícita do portador – nos levam a acreditar que estamos penetrando pouco a pouco num mundo de cada vez maior controle e vigilância, característico da era do Big Brother, em que os Estados nacionais, convertidos em agentes policiais do poder econômico e incapazes de atuar como entes da redistribuição da riqueza produzida, caçam dissidentes e outros seres não integrados ao sistema utilizando todo os dispositivos de um sofisticado aparato tecnológico. Um cenário a que o nosso imaginário já deve ter se acostumado, diante do incontável número de filmes que o cinema, especialmente o de Hollywood, produziu sobre o tema, entre eles Blade Runner, V de Vingança e Fahrenheit 451.


Chamado por Eric Hobsbawm de A Era dos Extremos e por Isaiah Berlin de “o mais terrível século na história ocidental”, o século 20 foi capaz de produzir ao mesmo tempo o céu e o inferno, ao nos oferecer a perspectiva de uma nova sociedade mas também nos mergulhar nos mais profundos abismos de duas horrendas guerras mundiais. O fim da União Soviética encerrou abruptamente esse período tão contraditório e nos deixou órfãos de uma nova proposta planetária que pudesse contemplar um projeto capaz de superar os desafios deixados pela ruína de dois grandes sistemas políticos e econômicos. O resultado de toda essa débâcle da humanidade é a destruição progressiva da vida na Terra, o aniquilamento de milhares de espécies e de fontes fundamentais para a sobrevivência – o que sugere um cenário sombrio para o futuro – mas prognostica também a incapacidade de instauração de uma ordem econômica e social justa e não predatória. A crise econômica claramente fabricada que acaba de eclodir revela a nova face do modelo neoliberal, com seu crescente controle da sociedade e a institucionalização de uma nova elite destinada a se perpetuar no poder, o que coloca a humanidade diante de um terrível dilema.

 

Vivemos numa situação parecida com aquela narrada em um famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, não por acaso escrito em 1942, durante a II Guerra Mundial:

 

E agora, José?/A festa acabou/a luz apagou/o povo sumiu/a noite esfriou/e agora, José?/e agora, você? 

Sérvulo Siqueira