27 de outubro de 2008
Na artificial atmosfera
feérica que se sucedeu, tudo parecia nascido de um conto de fadas
moderno. O regime do livre mercado, da liberdade de iniciativa, das
instituições democráticas havia derrotado o sistema da ditadura do
proletariado, dos gulags, da economia controlada e da liberdade
cerceada. Muitos arriscavam dizer que essa vitória do bem contra o mal
seria para sempre. Apareceu até mesmo um professor universitário que
produziu um paper em que previa o “fim da história” pois, como
dizia, com o triunfo do neoliberalismo o futuro apontaria apenas em uma
única direção.
E, de fato, as miríades
anunciadas pelos amestrados meios de comunicação convidavam-nos a pensar
que o futuro seria radioso. Uma vez que a sociedade capitalista
democrática de livre comércio havia provado a sua flagrante
superioridade sobre o sistema socialista de economia centralizada, todos
os países do planeta deveriam ter o bom senso de adotar o modelo
vitorioso, extinguir os monopólios estatais de serviços, abrir as
economias e entregar as suas riquezas à administração privada, para que
o princípio autorregulador do mercado pudesse finalmente impor o
equilíbrio necessário entre a oferta e a demanda.
Tudo, então, parecia nos
encher de uma grande expectativa e esperança: afinal, depois de tantos
percalços e sacrifícios, o homem havia chegado a um estágio superior em
que – dotado de uma capacidade política muito mais elevada e sem ser
constrangido a optar entre dois modelos antagônicos – estava em
condições de organizar um grande concerto entre os povos e as nações.
Certamente ainda subsistiam bolsões de resistência como Cuba, mas os
líderes vitoriosos nos garantiam que eles desapareceriam com o tempo.
O Brasil, um país onde a
elite dominante sempre gostou de se mostrar atualizada e em dia com os
últimos avanços, tratou logo de fazer a sua parte. Constantemente à
espreita de uma oportunidade para tirar proveito da situação, as
oligarquias do nosso Bananão perceberam na mudança a possibilidade de
fazer um bom negócio vendendo os bens que o Estado havia acumulado à
custa do sacrifício do povo brasileiro e assim concretizar uma aliança
subserviente com o capital vitorioso, obtendo de quebra um lucro com a
negociação do patrimônio da nação.
Todos conhecemos a
soturna história da vitória de Fernando Collor em 1989 e dos inúmeros
ardis e golpes baixos que a cercaram, desde os rompantes de falso
caçador de marajás à sua associação com a Rede Globo de Televisão, as
fraudes perpetradas na campanha eleitoral e nos debates, a encenação dos
sequestros do segundo turno, o lock-out das empresas de ônibus no
dia da votação decisiva e, por fim, o mistério que envolveu a sua
vitória e administração.
No final das contas, o
seu (des)governo foi o que menos interessou já que as medidas que eram
necessárias e aquelas que o capital reclamava foram todas tomadas:
privatização das siderúrgicas, um intenso processo de desregulamentação
do governo e de entrega de atividades sob o controle do Estado ao
capital privado, sem falar no terremoto político e econômico que
provocou ao assumir o Poder, com o congelamento dos depósitos das contas
correntes e de poupança. Ao paralisar de um só golpe toda a vida
econômica do país, Fernando Collor abriu na verdade o caminho para uma
avassaladora desnacionalização do sistema produtivo da nação.
Tudo isto se fez, é
claro, sob o arauto trombeteado pelos meios de comunicação de massa de
que a desregulamentação em curso traria uma grande melhoria da
capacidade produtiva do país, o que nos guindaria por certo e em pouco
tempo ao Primeiro Mundo. Nossos carros, alardeavam, eram então carroças
mas brevemente e sob a ação enérgica do nosso presidente, teríamos
acesso aos melhores produtos da indústria automobilística.
Como sabemos, o governo
eleito que o sucedeu foi ainda mais longe no processo de
desnacionalização das riquezas do país e o fato de praticamente não ter
sido contestado por oito longos anos tornou o seu legado muito mais
pesado, a “herança maldita” referida por alguns. Respaldado pela ampla
vitória eleitoral obtida em 1994, ainda no primeiro turno, Fernando
Henrique Cardoso aprofundou o modelo neoliberal ao esquartejar o Estado
brasileiro e colocá-lo quase que integralmente nas mãos do capital
estrangeiro. Dispondo de uma ampla maioria no Congresso, pleiteou e
obteve de forma ilegal a reeleição e as emendas constitucionais que
permitiram a reforma do Estado e proporcionaram ainda maiores lucros ao
capital privado, que se apropriou de todo o sistema de comunicações, de
quase todo o setor elétrico, da malha ferroviária, da Vale do Rio Doce e
da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), num processo que
esvaziou a economia brasileira a ponto de gerar uma redução no Produto
Interno Bruto (PIB) da ordem de um terço, o que representou uma perda na
riqueza do país de aproximadamente 300 bilhões de dólares ao ano.
Ao preparar todas essas
empresas para a sua privatização, o governo de FHC – seguindo os ditames
do Consenso de Washington – submeteu-as a um processo de saneamento,
demitindo milhares de trabalhadores para livrar os novos proprietários
de futuros encargos sociais. Esse procedimento se estendeu a todos os
setores privatizados, inclusive ao sistema bancário brasileiro, cujo
setor estatal foi devidamente enxugado para que pudesse ser entregue aos
banqueiros nacionais e internacionais expurgado dos inconvenientes e
insubmissos funcionários, que foram substituídos por máquinas. Durante
esse curso, centenas de milhares de bancários, securitários,
ferroviários, além da mais variada mão de obra, foram postos no olho da
rua para viabilizar preços mais baratos aos pretensos compradores, que
sequer chegavam a despender qualquer quantia em dinheiro uma vez que
todas as operações se fizeram por meio de generosos financiamentos que,
em muitos casos, nunca foram pagos.
A eleição de Luís Inácio
da Silva em 2002 representou uma espe-rança para milhões de brasileiros
mas infelizmente tudo se desvaneceu um pouco antes da posse quando o
presidente eleito indicou para o posto de xerife do cofre-forte da
União, a presidência do Banco Central, um antigo presidente mundial do
Banco de Boston, notório por seus crimes de lavagem de dinheiro e
sonegação de impostos.
Pouco a pouco as
expectativas foram se frustrando, desde o aumento do superávit primário,
a persistência de altíssimas taxas de juros que produziram uma
assustadora dívida pública e um escandaloso enriquecimento dos
banqueiros, a nova reforma da Previdência – que precipitou a
discordância da senadora Heloísa Helena e sua truculenta expulsão do
partido –, a lei de falências, o projeto das parcerias público-privadas
(que recebeu um nome mais irônico no comentário popular), o estatuto de
intocável outorgado ao presidente do Banco Central para tentar
preservá-lo contra acusações de crimes de colarinho branco, entre muitos
outros fatos, culminando no envolvimento de toda a máquina governamental
em flagrantes casos de corrupção que levaram à cassação do seu principal
operador político, o ex-deputado José Dirceu.
Quando se previa um
completo afundamento do aparato partidário e do sistema de governo,
viu-se que Luís Inácio da Silva ainda tinha uma carta, que se revelou
providencial e oportuna e possibilitou a sua reeleição. O programa Bolsa
Família, uma herança do Bolsa Escola, fez escorrer uns poucos trocados
para o bolso de milhões de brasileiros desamparados e se transformou no
carro-chefe do governo, alimentando mais uma vez a convicção de que a
nossas sucessivas administrações públicas jamais apresentaram um
verdadeiro projeto social ao país mas, sim, meros programas
assistencialistas e clientelistas.
Não se pode dizer –
apesar do porte gigantesco do programa, que só tem equivalente no
tamanho da nossa miséria – que ele tenha oferecido a mais remota
possibilidade de solução para a imensa crise social brasileira mas, no
entanto, é absolutamente certo que preservou a presidência para Luís
Inácio da Silva por mais quatro anos.
Assegurado o poder e ao
menos postergado por algum tempo um processo de convulsão social que
perturbasse os negócios, tudo parecia ter retomado o curso natural, com
os grandes bancos, como o Itaú e o Bradesco, postando a cada trimestre
lucros da ordem de mais de um bilhão de reais, a economia inteiramente
oligopolizada, os serviços públicos como luz, telefone, gás e
transportes nas mãos de cartéis, o que por si só já bastava para
assegurar o apoio dos grandes capitalistas ao sistema vigente e a
perspectiva de reinar por mais algum tempo, fazer o seu sucessor ou até
mesmo obter uma nova reeleição para o presidente. Foi então que o
mandatário populista sacou mais uma carta da sua cartola presidencial,
ao acenar com a política energética do etanol como uma grande
alternativa para a crise mundial do petróleo. Embora essa proposta ainda
não tenha se transformado em um grande sucesso, ela serviu para
despertar a atenção de investidores nacionais e estrangeiros e alimentar
a cobiça por lucros fáceis, decorrentes da compra de vastas extensões de
terras e da exploração de mão de obra barata num país onde os direitos
sociais ainda continuam sendo uma questão de polícia.
A crise financeira das
hipotecas nos bancos americanos explode num momento de aparente calmaria
para os atuais detentores do poder no Brasil, com a popularidade do
presidente em alta e a enorme tensão social sob controle – ainda que em
parte pela ação da polícia, que hoje ostenta recordes de violação de
direitos humanos – mas seus desdobramentos ameaçam criar uma vertiginosa
crise econômica para todo o capitalismo neoliberal, já que de seu
epicentro nas bolsas, onde as ações são negociadas, ela tende a se
alastrar para o sistema produtivo, comprometendo os empregos e o
consumo.
Subitamente, o
gigantesco edifício do sistema financeiro capitalista começa a ruir,
desfazendo a crença alimentada por quase duas décadas em sua
estabilidade e segurança. A infalibilidade do deus-mercado e a lógica
inequívoca do capitalismo de livre empresa representadas pelas Bolsas de
Valores já não parece tão sólida, mostrando que sua capacidade
autorreguladora na verdade não existe e que – quando deixado à sua
própria sorte – o velho capitalismo não é nada mais do que uma atividade
extremamente predatória e destrutiva. À propósito, Michel Chossudovsky,
um dos grandes analistas da globalização, diz que de cada dez dólares
que existem no mercado apenas um único dólar cria prosperidade. A imensa
abundância de capital especulativo não foi capaz de distribuir riqueza,
ao contrário, acentuou a disparidade de renda ao se concentrar nos
paraísos fiscais – dos quais o Brasil é hoje um dos que melhor o
remunera – e privilegiar os investimentos de curto prazo sem caráter
produtivo.
Os resultados obtidos
mostram um completo fracasso do modelo neoliberal. No entanto, por ter
se apoderado do aparelho estatal e o colocado a seu serviço, o
capitalismo financeiro ainda está longe de se considerar derrotado. Ao
longo dos quase vinte anos que decorreram desde a queda da União
Soviética e do socialismo real, o processo de rapina e pilhagem operado
sobre o cidadão e os Estados nacionais foi capaz de produzir uma
acumulação de capital de tal ordem que o modelo neoliberal detém hoje um
poder absolutamente incontrastável em todo o planeta. Esse poder é na
verdade tão grande que é efetivamente maior do que o próprio local de
onde ele se originou, os Estados Unidos da América. Com sua política de
mercados livres e desregulados, capitalismo off-shore, mecanismos que
facilitam a lavagem de dinheiro e migração de capitais, criação de
hedge funds sem nenhum controle, mercados de derivativos, emissão de
papéis sem lastro e especulação desenfreada, o capitalismo neoliberal
norte-americano criou as condições para a sua erosão, que hoje assume a
forma de um imenso buraco negro e ameaça mergulhar a humanidade numa
crise sem precedentes.
Confrontado com a
abissal estupidez e inconsequência inerente à sua própria natureza,
causada pela mais absoluta ganância e avidez, esse capitalismo
financeiro ameaça agora exercer chantagem sobre a sociedade. Da mesma
forma, como haviam feito há pouco quando ameaçaram condenar o mundo e
especialmente os países pobres à fome e à ausência de alimentos, os
grandes oligopólios insinuam com a possibilidade de uma paralisação da
atividade econômica, demissões e desemprego, caos e convulsão social,
caso não sejam compensados por prejuízos a que foram levados pela
natureza fria e meramente concupiscente da atividade a que se dedicam.
No limite da ruína, os notórios banqueiros – verdadeiros sanguessugas e
parasitas do processo produtivo – anunciam que a iminente falência do
sistema pode levar à bancarrota toda a economia e exigem compensações
cada vez maiores para continuar operando. Impõem assim um verdadeiro
estado de sítio psicológico à sociedade, obrigando-a a sustentar com
imensas verbas um sistema parasitário, sob pena de mergulhar na profunda
ruína. Por sua vez, o Estado – dominado e colocado a serviço da elite
financeira – tende a se submeter docilmente a essa coação. Lembre-se que
o Secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, – que hoje, como se
diz, governa de fato os Estados Unidos – foi o principal executivo do
banco de investimentos Goldman Sachs, um dos artífices determinantes
dessa crise.
Depois do tenebroso 11
de Setembro de 2001, o mundo vive uma atmosfera permeada pelas maiores
brutalidades, especialmente aquelas praticadas pela última grande
potência ainda existente. As agressões cometidas contra o Afeganistão e
o Iraque, aparentemente em represália a um ato cuja autoria nunca foi
devidamente comprovada, a exibição de uma tecnologia de armas de
destruição e seu uso claramente des-proporcional, a institucionalização
de um estado policial de fato e de direito nos Estados Unidos da
América, o controle da informação em todas as suas latitudes, as
políticas de viés racista praticadas pelo Estado americano, a União
Européia e o Japão contra cidadãos do Terceiro Mundo, os chips inseridos
em cartões de crédito, passaportes, cartões de identificação, roupas e
outros objetos – na maioria dos casos sem a concordância explícita do
portador – nos levam a acreditar que estamos penetrando pouco a pouco
num mundo de cada vez maior controle e vigilância, característico da era
do Big Brother, em que os Estados nacionais, convertidos em agentes
policiais do poder econômico e incapazes de atuar como entes da
redistribuição da riqueza produzida, caçam dissidentes e outros seres
não integrados ao sistema utilizando todo os dispositivos de um
sofisticado aparato tecnológico. Um cenário a que o nosso imaginário já
deve ter se acostumado, diante do incontável número de filmes que o
cinema, especialmente o de Hollywood, produziu sobre o tema, entre eles
Blade Runner, V de Vingança e Fahrenheit 451.
Vivemos numa situação
parecida com aquela narrada em um famoso poema de Carlos Drummond de
Andrade, não por acaso escrito em 1942, durante a II Guerra Mundial:
E agora, José?/A festa
acabou/a luz apagou/o povo sumiu/a noite esfriou/e agora, José?/e agora,
você?
Sérvulo Siqueira |