21 de julho de 2018
Os gladiadores do velho colonialismo e do
emergente neonazismo
Um dia após o 14 de julho, em que
a gendarmerie francesa
– para comemorar a queda da Bastilha em 1789 – impôs um
cerco à cidade de Paris, criando assim um universo
concentracionário ainda maior do que a antiga prisão, a
seleção nacional de futebol da França derrotou, após um
jogo conturbado, a equipe representante da Croácia e
conquistou a 21ª edição da Copa do Mundo da FIFA.
Com seu time recheado por
estrangeiros ou descendentes de imigrantes, a vitória
francesa pode ser vista como a afirmação dos valores do
velho colonialismo que oprime os povos dominados,
saqueia suas riquezas e utiliza sua força de trabalho
para seus propósitos de lucro e grandeza sobre a seleção
da Croácia, que encarna hoje os valores de eugenia
racial praticados no país nascido no final do século 20,
onde desde algum tempo se cultiva um conceito de pureza
étnica que foi explorado em proveito próprio pelos
nazistas na 2ª Guerra Mundial.
O grande número de gols contra
(12) e de penalidades máximas (29) cometidos durante os
pouco mais de 30 dias do torneio dá bem a medida do
caráter defensivista que permeou as partidas. A média de
gols por jogo (2,6 por partida), uma das mais baixas da
história das Copas – agravada ainda mais pelo fato de
que destas anotações 40% delas nasceram de jogadas
iniciadas a partir de uma bola parada, o que por sua vez
denota a falta de capacidade dos atletas para a prática
do jogo coletivo, que constitui a verdadeira essência do
esporte − também indica a ausência de habilidade e
destreza demonstrada pela grande maioria dos atletas
para colocar a bola dentro dos limites de
2,44 metros de altura
por 7,32
metros de largura da trave defendida pelo goleiro.
Embora não se possa considerar este fato uma novidade, a recente Copa da
FIFA exibiu também cenas de extremo narcisismo dos
atletas na comemoração dos seus gols, com imagens de
exibicionismo explícito onde não faltavam sinais de
comando para a plateia incitando-a com o dedo em riste a
que calasse a boca ou – inversamente, com as mãos
próximas à orelha – para que se manifestasse com grande
ruído. Em muitos casos, o jogador que havia marcado o
gol deixava de comemorar o feito com seus companheiros
de equipe, mas protagonizava uma coreografia para o
estádio onde se apresentava como responsável por uma
grande realização, concluindo ao final a sua performance
com um acrobático deslizar de joelhos sobre o gramado.
O resultado foi então que embora não tenha havido tantas jogadas de
futebol coletivo, sobraram manifestações individualistas
onde não faltaram exposições que pouco tinham a ver com
o esporte, tais como os mais bizarros cortes de cabelo e
a enorme variedade de tatuagens sobre todo o corpo dos
jogadores, atingindo em alguns casos até mesmo a própria cabeça. Em
gestos pouco esportivos, outros participantes da Copa
tiraram suas camisas para comemorar seus gols ou para
chamar atenção às suas posições políticas.
Neste universo povoado por jogadores que aspiravam à glória da conquista
do título de campeão do mundo, sobressaíram naturalmente
alguns atletas que foram apresentados como as estrelas do
espetáculo, primas-donas que iriam fazer valer o seu talento
virtuosístico. Neste sentido, a 21ª Copa do Mundo da
Rússia de 2018 foi pródiga em novidades já que os
celebrados supercraques Cristiano Ronaldo, Leonel Messi
e Neymar Jr. não corresponderam à expectativa criada por
sua legenda e foram amplamente superados por Mbappe,
Hazard, Cavani, Griezman, Lukaku, De Bruyne e Luka
Modric, entre outros.
Dois deles, Cavani e Lukaku, publicaram durante o evento uma rememoração
de suas infâncias e sobre o sacrifício que se exige de cada
atleta para alcançar e sobreviver em um ambiente
altamente competitivo como o futebol.
Em uma carta ao garoto que foi no passado, o uruguaio Edinson Cavani
rememora o sonho de liberdade e a crença de que o
futebol seria o lugar onde iria conquistá-la. Recorda
então que “quando você é menino, tem a sensação de que a
pessoa mais bem-sucedida é aquela que possui mais
coisas”. Para descrever a disciplina e a rotina da vida
de um atleta, conta:
─
Sabe como é a vida agora, aos 31 anos de idade? Você vai
de um hotel a um ônibus e dali a um campo de
treinamento. Depois do campo de treinamento, toma um
ônibus e então um avião. Depois do avião, você pega um
outro ônibus. E neste ônibus, segue até um estádio.
Lembrando sempre que é um sul-americano, do
Uruguai, e que isto tem um significado diferente, Cavani
conclui, filosoficamente, aconselhando o garoto a que busque sempre um
objetivo em tudo que fizer:
─ Quando crescer, você se dará conta de que
a pessoa mais realizada é aquela que tem a sabedoria
para viver a vida.
Por sua vez, o descendente de congoleses,
Romelu Lukaku, jogador da seleção belga, narra como
começou a jogar numa equipe profissional aos 16 anos de
idade após passar fome como criança, calçar sapatos com
buracos e sofrer diversos tipos de preconceito.
Relata então que “... quando as coisas
corriam bem, eu lia os artigos de jornal e eles me
chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga. Quando as
coisas não corriam bem, eles me chamavam de Romelu
Lukaku, o atacante belga descendente de congoleses”.
Por fim, afirma que
“eu apenas realmente, realmente gostaria que meu avô estivesse vivo para
ver isso. Eu gostaria de ter mais uma conversa com ele
por telefone, para poder dizer para ele… Eles não
precisam mais checar nossos documentos. Eles conhecem
nosso nome”.
Embora a célebre frase −
O importante é
competir! – criada pelo Barão de Coubertin tenha
embalado por muito tempo a propaganda dos Jogos
Olímpicos sabe-se hoje, depois de inúmeras denúncias de
corrupção divulgadas com frequência, que os verdadeiros
interesses que norteiam os eventos esportivos são os
lucros dos patrocinadores e os negócios do Comitê
Olímpico Internacional – comandados por quem um
jornalista chamou de “os senhores dos anéis” − e da
FIFA, outra entidade igualmente mafiosa.
Nos Jogos Olímpicos, os
países hegemônicos lideravam amplamente no número de
medalhas até a década de 60 do século passado quando, em
razão de um intenso programa de massificação do esporte,
os países socialistas da chamada Cortina de Ferro – Alemanha Oriental, Polônia,
Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária e Iugoslávia
− começaram a disputar um espaço no pódio. Até mesmo uma
nação com uma pequena população e reduzido território
como Cuba − com fortes equipes de atletismo e vôlei
masculino e feminino, beisebol e boxe − chegou a estar
entre os dez primeiros no número de medalhas olímpicas.
Sabe-se em detalhes o
cerco que agentes da poderosa liga de beisebol dos EUA
faziam aos jogadores cubanos, especialmente antes dos
decisivos jogos pela medalha de ouro com a seleção
americana. As grandes empresas patrocinadoras dos
eventos acabaram se tornando vitoriosas nesta competição
ao levar muitos atletas para a Europa e hoje a
representação do país de Fidel e Raul Castro já não
apresenta a mesma força de antes.
De outra parte, é também
conhecido o episódio ocorrido com Cassius Marcellus Clay
Jr. após ganhar uma medalha de ouro para seu país nos
Jogos Olímpicos de Roma, em 1960. Segundo o próprio
relato, sua consciência política nasceu quando – ao não
ser atendido em um bar por ser negro −jogou fora a
medalha que havia obtido, tornou-se membro dos
Muçulmanos Negros e adotou o nome de Muhammad Ali como
uma forma de “orgulho, não preconceito”, como gostava de
afirmar.
Outro fato, ocorrido há
mais de 20 anos, ilustra esta relação de poder econômico
e político
nos esportes. Em 1996, durante os Jogos Olímpicos de
Atlanta, nos EUA, após vencer as disputas pelas medalhas
olímpicas femininas nos
200 e
400 metros, a corredora Marie-José foi
flagrada pelas câmeras chorando visivelmente. Mais
tarde, ela explicou a razão de tanta emoção:
─ Depois da minha
vitória, foi executado o hino nacional francês: aí eu me
lembrei que nasci nas Ilhas Guadalupe.
Detentora de três
medalhas de ouro nas olimpíadas, uma em Barcelona e duas
em Atlanta, além de dois campeonatos mundiais e inúmeros
outros prêmios, Marie-José Perec nasceu em Basse-Terre,
nas Ilhas Guadalupe, e somente pôde participar dos jogos
porque competia pela França, uma vez que sua terra
natal, um departamento ultramarino de um velho sistema
colonial que ainda sobrevive em pleno século21, não tem
autonomia para participar do evento.
As ilhas Guadalupe são um entre os muitos territórios
ultramarinos franceses ainda espalhados pela América.
África, Oceania e Antártica.
No século 20, após intensas e sangrentas lutas de
libertação, muitos países da África alcançaram sua
independência política. Entre 1956 e 1960, libertaram-se
do jugo colonial o Marrocos, a Tunísia, a Argélia, a
Guiné, Camarões, o Togo, Benin, Madagascar, a
Costa do Marfim, a República do Congo e o Chade, entre
muitos outros. A grande maioria, no entanto, não
conseguiu atingir um grau de autonomia econômica e
continuou a ser explorada economicamente pela antiga
metrópole. De tal maneira a nação gaulesa sustenta a sua
opulência sobre suas antigas colônias que Jacques
Chirac, um ex-presidente do país, afirmou:
─ Sem
a África, a França seria uma potência de terceira
classe.
Na América, as administrações francesas que ainda
persistem são a Guiana Francesa, Saint Pierre et
Miquellon, Guadalupe e
Martinica. Na África, Mayotte e a Ilha de Réunion.
Na Oceania, encontram-se o arquipélago da Nova
Caledônia, as ilhas Wallis, Futuna e Marquesa, assim
como a Polinésia Francesa. Na Antártida, situam-se as
possessões francesas da Terra Adélie, Kerguelen, Crozet,
Amsterdam e Saint Paul.
Por sua vez, os jogadores
da seleção que entoaram canções xenófobas e deram vivas
ao regime fascista da Ucrânia nada mais fizeram do que
repercutir as políticas que vêm sendo implantadas pela
União Europeia contra os imigrantes, a grande maioria
deles expulsos de seus países por guerras promovidas
pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
A mais recente medida adotada pela UE,
consistindo na criação de uma carteira de identidade com
dados biográficos e biométricos para os cidadãos
estrangeiros, está sendo vista como uma antecipação de
um controle total a ser estendido no futuro para todos
os cidadãos do continente. A organização de defesa dos
direitos humanos Statewatch considera que a proposta “cria o risco de que se confunda
os limites entre a administração do problema da migração
e a luta contra o crime e o terrorismo e pode até
criar uma
assimilação entre terroristas, criminosos e
estrangeiros”.
A alta
prioridade que está sendo dada pela União Europeia à
questão de sua segurança interna mostra que o vínculo
com o complexo militar é cada vez maior, como indicam os
crescentes gastos de seus países membros com tecnologia
e pessoal no setor. Embora este projeto seja apresentado
como um modelo de pesquisa integrada entre sistemas de
vigilância por terra, ar, mar e espaço cibernético,
segundo o relatório do
Statewatch assinado por Ben Hayes, seu objetivo “vislumbra o mundo
dividido em zonas vermelhas e zonas verdes; fronteiras
externas controladas por uma força militar e
internamente por uma extensa rede de postos de segurança
físicos e virtuais; espaços públicos, microestados e
megaeventos policiados por sistemas de vigilância de alta tecnologia
e forças de reação rápidas; missões de
manutenção de paz e de
administração de crises que não estabelecem nenhuma
distinção operacional entre um subúrbio de Basra, no
Iraque, e uma
Banlieue, na periferia de Paris; assim como uma
crescente integração das funções de defesa e de
segurança nacional dentro e fora do país”.
Todo este
esforço lembra o modelo do
Panopticon,
prisão modelo criada por Jeremy Bentham, também chamada
de Casa de Inspeção, onde os guardas poderiam observar
os prisioneiros sem que estes pudessem determinar quando
e de onde estavam sendo vistos. Já no plano externo,
esta função de vigilância deverá ser exercida pela OTAN,
que concretizará assim o projeto da Fortaleza Europa
que, como um gigantesco
Big Brother,
vasculhará todo o espaço do continente.
Impossível
deixar de lembrar o
Relatório Lugano, de Susan George, no qual fica claro que se Hitler
e Mussolini foram derrotados na 2ª Guerra Mundial o
fascismo e o nazismo estão vivos e gozam de boa saúde em
todo o mundo, inclusive no Brasil.
O
último ato desta ópera bufa pode ser considerado como
verdadeiramente emblemático de mais esta produção da
sociedade do
espetáculo. Na cerimônia
de premiação dos vencedores da 21ª Copa do Mundo de
2018, Emmanuel Macron, o funcionário dos banqueiros
Rothschild, e
Kolinda Grabar-Kitarovic, simpatizante do nazismo,
irmanados pelos mesmos ideais, deram-se as mãos e
festejaram o convescote da OTAN nas terras do seu maior
algoz sob as vistas de Vladimir Putin, que parecia se
divertir com a bizarrice de toda a cena.
Infelizmente, parece
que neste negócio não há mais mocinhos – se é que
algum dia eles chegaram a existir – mas a realidade
é que no último domingo, dia 15 de julho de 2018,
assim como ocorreu com Jesse Owens nas Olimpíadas de
Berlim de 1936, os descendentes dos
escravos africanos novamente derrotaram os defensores da raça
branca pura. Sérvulo Siqueira |