Verdades e Mentiras: Personagem de Borges

 

"Eu sou uma mentira que diz sempre a verdade" (Jean Cocteau). "A arte é uma mentira, mas esta mentira nos faz compreender a verdade" (Picasso). Pressupostos estabelecidos por Orson Welles – um deles, o de Picasso, de forma explícita - para conduzir esta discussão nietzscheana sobre o estético enquanto ético.

Para nos convencer desta argumentação, Welles utiliza um artificio: uma incessante duplicação da imagem. As falsificações de Elmyr de Hory, a biografia forjada por Clifford Irving de Howard Hughes e a parábola encenada por Welles e Oja Kodar são na verdade um pretexto criado pelo diretor para uma discussão sobre o caráter da duplicação-representação e, portanto, da falsificação da imagem e seu ilusório fetiche. Essa discussão remete invariavelmente – e não poderia ser de outra forma à mesa de edição onde o filme está sendo realizado. A sala de montagem é então o equivalente perfeito do poder mágico de que os "falsários" são dotados, uma vez que ela própria tem a capacidade de falsificar as imagens e seu sentido de realidade.

Apresentando-se como mágico desde o início do filme, Welles conduz este mecanismo onde Eisenstein dizia executar "a tesoura poética", para referendar esteticamente as falsificações de Hory e Irving. A duplicação é também uma repetição e obsessivamente o filme retorna sempre às mesmas questões: que significa o falso na arte? O que é falso em arte se a arte em si é falsa? Neste exercício cinematográfico de dúvida e ironia, o ponto de encontro desta sofistica da imagem é a moviola, este prodigioso engenho onde o cinema é efetivamente realizado. Usina de sonhos, segundo Ilya Ehrenburg, Homem imaginário, para Edgar Morin, Impressão de realidade, de acordo com Christian Metz, o cinema seria o veículo ideal para este inventor que confessa ser um "charlatão".

Dispondo de um vasto arsenal de artifícios, que vão dos poderes das superimpressões às fusões, câmeras lentas e aceleradas, fotogramas fixos, etc, Orson Welles desfia como um mestre de cerimônias o repertório da linguagem, como que para provar o seu lado falso e ilusório. Sem discutir suas implicações pode-se dizer que este exercício contém uma contradição. O barroquismo do seu cinema jamais impediu que o vigor social dos seus filmes se desbordasse num puro exercício de ilusionismo. Ou, consagrado bricoleur, Welles estaria simplesmente se divertindo e brincando com os espectadores?

Orson Welles que na década de 50 começou sem ainda concluir sua adaptação de "Dom Quixote" – talvez estivesse se lembrando de um relato de Jorge Luis Borges sobre um homem que decidiu reescrever o livro de Cervantes. Pierre Menard, este era seu nome, depois de muito estudar, chegou à conclusão de que para tanto seria necessário viver no século XVI, lutar contra os mouros e se distinguir como notável fidalgo. Não desanimou, entretanto, e terminou por escrever o "Quixote". As pessoas então se maravilharam. "Vejam este trecho, é muito melhor", diziam. Borges transcreve os dois textos. Aí se verifica que o livro de Pierre Menard é rigorosamente igual ao de Cervantes.

 

Sérvulo Siqueira

Publicada no jornal O Globo em 28 de novembro de 1977