Jules et Jim/Uma mulher para dois

 

Falar de “Jules et Jim”, antes de mais nada, me parece uma necessidade. E uma obrigação a que mesmo um estreante em críticas diárias não poderá faltar. Discutir os filmes da nouvelle vague é uma prova de amor ao cinema e à sua história, mesmo porque esse não é um movimento normal, rotineiro, como tantos já o foram, mas a sua própria revolução.

Já foi dito que o cinema de Lara, Carné, Duvivier necessitava de humanismo. Estava restrito a alguns diretores vitalícios e aos adaptadores Aurenche, Bost e outros. Intelectuais completamente esquecidos da ideologia do cinema, que é um fenômeno humano voltado para a realidade humana.

Restringir a nouvelle vague ao seu conceito de mise-en-scène seria um grave erro, em primeiro lugar porque essa escola é muito mais do que isso: é uma revolução que compreende uma ideologia humanista e, em segundo, porque isso seria limitá-la à sua importância sociológica e defini-la unicamente em relação ao cinema.

A sua expressão está na razão direta do interesse que provocou entre os intelectuais e artistas vinculados ao teatro, à literatura e à pintura, assim como o novo cinema italiano iniciado por Antonioni, visando abrir caminhos ao cinema.

A eclosão da nouvelle vague rompeu as estruturas tradicionais, o academicismo, aboliu o uso de truques, abriu para si e para o próprio cinema perspectivas mais claras, mais humanas. Criou uma nova moral, uma moral que se instala nos sentimentos, na compreensão dos fatos cotidianos.

A sua gênese - produto da exaustão do antigo cinema – criou um paradigma para novos cinemas em diversos países. Assim, a busca de uma nova moral, de uma nova dimensão - a fuga aos preconceitos e a reestruturação da indústria cinematográfica francesa – incorporavam os propósitos desta nascente escola.

Nesse raciocínio, “Jules et Jim” representa o próprio movimento. A nova moral revela-se na problemática dos seus personagens e na tentativa dessa nova concepção de solucionar um problema, perpetuando-o na sua proposta.

Recorde-se, a propósito, uma recente entrevista concedida por François Truffaut em que dizia que no cinema o indispensável era a moral e a poesia. Sem estas duas não existiria Jules et Jim. Uma mulher para dois representa também a tentativa do cinema superar suas limitações teatrais e as influências pictórica e literária  a que sempre esteve afeito. Seu esforço se faz para superar estas deficiências e superar-se a si mesmo, como expressão artística e estética. É também a libertação dos conceitos estéticos, alienados do contexto social e a necessidade de se afirmar como expressão da sua mentalidade humana, em suma, uma proposta de revolução no cinema.

O cinema não está limitado a uma máquina, a um mecanismo cientificamente planejado, ele é um fenômeno idealista, dizia André Bazin. Limitá-lo seria atribuir à mise-en-scène a sua especificidade, ela é um meio indispensável ao próprio cinema mas não um fim. Se - de acordo com as palavras de Truffaut - compreende-se a necessidade da moral e da poesia, a nouvelle vague não é essencialmente um estilo de encenação.

É bastante curioso notar-se a despreocupação do cineasta com a época, Não lhe importam muito o décor e o vestuário. Existe uma atmosfera de preservação do tempo em que passa a história, mas essa é uma preservação despretensiosa. Basta-lhe, para documentar uma época, apenas um quadro de Picasso e um cartaz do Gaité na parede de um dos cafés parisienses. Na Paris de 1907 ou em 1963, esse filme nos enternece contando uma história de amor, poesia, ternura, fazendo-nos identificar também com Jules (Oskar Werner), Jim (Henri Serre), Catherine (Jeanne Moreau), personagens humanos e verdadeiros que sentem, choram, falam, vivem.

Se a nouvelle vague é mais do que uma escola de cinema – a sua própria perspectiva de renovação  - o olhar aberto e voltado para o homem, a reação ao anti-humanismo, a valorização dos sentidos, Uma mulher para dois representa - por meio de  emoções - algo que faz parte história dos sentimentos Em Jules et Jim, esta proposta longamente acalentada se cumpre porque estamos diante de uma das páginas mais belas e comoventes de toda a arte cinematográfica.

 

Sérvulo Siqueira

 

Publicado no jornal Correio de Minas em 13 de setembro de 1963