Os Doces Bárbaros

 

Segundo o produtor e diretor Tom Job Azulay, a idéia de transformar o que seria um curta de 16 mm para a televisão em um filme de longa-metragem a ser distribuído em circuito comercial surgiu dos acontecimentos em Florianópolis que envolveram Gilberto Gil e o baterista Chiquinho. Este embrião, cuja inspiração, no mundo do rock, poderia ser comparada aos assassinatos perpetrados no show dos Rolling-Stones em Altamont e que foram registrados em Gimme Shelter, transformaria o filme em uma investigação mais séria e profunda sem perda das suas intenções de registro de um espetáculo musical.

Embora uma obra deva ser julgada como um produto acabado e não como o que ela deveria ser, essas observações ocorrem quando se constata que – talvez pela rigidez estática das câmeras no palco ou então por uma montagem pouco criativa a duração das seqüências musicais torna-se um pouco arrastada. O filme parece assim um curta-metragem esticado e o que mantém o seu interesse passa a depender da qualidade musical e coreográfica de Gil, Caetano, Gal e Bethânia.

No entanto, como observou Caetano Veloso na entrevista em São Paulo, documentada no filme, Os doces bárbaros são "um produto cultural" reunindo quatro companheiros de trabalho baianos no momento em que atingiram uma confortável posição de prestígio em suas carreiras. Assim, o trabalho de "Jomico" Azulay envereda pelo caminho mais fácil do documento bruto musical, entremeando-o com momentos em que seus intérpretes parecem revelar uma verdade humana mais espontânea.

A preocupação em oferecer um produto musical, estabelecendo relações conceituais entre as músicas na montagem reduz o espaço onde a linguagem do filme poderia dar um sentido mais natural à narrativa: as entrevistas dos quatro especialmente dos depoimentos de Gilberto Gil e Maria Bethânia e a seqüência do interrogatório de Gil na delegacia de Florianópolis. Se tivessem sido melhor exploradas, elas satisfariam a necessidade que o espectador tem de conhecer melhor os criadores cujo produto consome, investigando suas relações com o sistema econômico e cultural que os envolve.

Optando pela música, o filme pode, no entanto, oferecer um pouco do melhor dos eventuais "doces bárbaros": as sentidas interpretações de Gal e Bethânia, e a musicalidade de Gil e Caetano. Dispondo de um aparato técnico adequado, com uma bonita fotografia de Luís Carlos Saldanha e som direto de qualidade, o documentário permite escutar não fosse a má reprodução sonora de algumas salas exibidoras as excelentes improvisações dos sopros de Mauro Senise e Tuzé de Abreu, a intensa e envolvente percussão de Djalma Correia, o ritmado e seguro baixo de Arnaldo, a musicalidade de Perinho na guitarra e o piano de Tomás Improta; instrumentistas que também contribuem para que a música brasileira seja sempre uma fonte inesgotável para o nosso cinema.   

 

Sérvulo Siqueira

 

Publicada no jornal O Globo em 5 de abril de 1978