O Forte

 

É uma tragédia que do cinema brasileiro nasçam e desapareçam autores sem que lhes sejam dadas as mínimas condições de projetarem suas visões. Olney São Paulo viveu sempre esta penúria; o desencontro entre o ato e a potência, o desejo e o objeto, o roteiro e as condições básicas de realização. Seu filme O forte capta todos os eflúvios que moveram Nelson Pereira dos Santos em Tenda dos milagres; a sensualidade da mulata, a mesclagem da raça. Os elementos estão lá: talvez fosse necessário dar a esta linguagem informe um sentido de organização, sem as quebras de ritmo que a cópia exibe despudoradamente.

O filme expõe o lado da nossa realidade que mais solapa a nossa memória, o esquecimento de nós mesmos o forte não será destruído por um objetivismo irrefutável mas por força de uma incontrolável negação do passado e sobre suas cinzas se alçam a demagogia e o populismo. Os personagens do filme não carregam a aura dourada do herói positivo, não conseguem nos fazer mais felizes ou tristes, apenas um pouco nostálgicos, na medida em que compreendemos o valor do nosso passado que se perde irreparavelmente.

Na estrutura do filme se aglutinam os caracteres componentes do nosso inconsciente cultural: o Ladrão de Bagdá, as fotonovelas, as canções de cabaré, a pieguice e o sentimentalismo. Por razões outras que não conhecemos, esta obra não foi exibida no seu devido tempo, o que faria jus a esta necessária recíproca que ela merecia do público. No entanto, melhor seja ainda poder assisti-la tardiamente, para compreender como pôde ser deglutido antropofagicamente o nosso repositório cultural contido em romances, peças, músicas e outras manifestações. Esta forma de transgressão operada no filme é a fidelidade a uma contemporaneidade que Olney sempre buscou em seus filmes desde O canto da terra, questionamento do processo político brasileiro antes de 64, com suas implicações de liderança e o processo de sua transformação. Em Manhã cinzenta, segundo longa-metragem, uma ficção científica projetada sobre o cotidiano opressivo da nossa realidade ainda não exibido comercialmente – este canto é novamente retomado como parábola justa e precisa.

A existência de filmes como "O forte" – que exibe o nosso lixo cultural transformado em ruínas nos escombros da velha fortaleza – representa também a lembrança do nosso passado, como a revolta dos alfaiates de 1798, tarefa a que o cinema brasileiro deve sempre se propor, como um olho aberto sobre a realidade.

 

Sérvulo Siqueira

 

Publicada no jornal O Globo em 1º de março de 1978