Casa de Bonecas

 

Escrita em 1879, a peça Casa de bonecas de Henryk Ibsen  foi interpretada a princípio como uma tomada de posição em favor da questão feminista. Considerada um dos dramas mais célebres da segunda metade do século XIX, sua proposta denunciava um aspecto ainda mais agudo: o isolamento da personagem de Nora Hellmer representava uma projeção do próprio Ibsen – um autor predominantemente lírico – que seria ampliada mais tarde na revolta solitária do Dr. Thomas Stockmann de O inimigo do povo.

Joseph Losey, diretor egresso do cinema americano – de onde saiu após ter sido incluído na lista negra da Comissão McCarthy – pratica um cinema cerebral e minucioso, onde a sobrecarga barroca de sua encenação se superpõe muitas vezes à significação dramática do argumento. Embora americano, seu estilo melhor se adaptou ao cinema europeu: um rebuscamento na descrição da representação dos atores e sua relação com o cenário, em que a mise-en-scène tende a se constituir, em muitos casos, no próprio veículo de si mesma.

Do universo pessoal de Ibsen e Losey algumas características comuns podem ser extraídas e,  entre elas, sobretudo o individualismo dos seus personagens e sua relação com a decadência. Defrontado, entretanto, com problemas de produção e a contestação da atriz Jane Fonda, que pretendia uma guinada ideológica ostensivamente feminista no roteiro, Joseph Losey chega a reduzir sua linguagem extremamente conotativa a um simples registro contemplativo da peça. Certamente por isso, muitos cultores de Losey verão em Casa de Bonecas seu filme menos pessoal: uma escritura reduzida a um movimento frio e por vezes quase automático. Não faltam, entretanto, a presença de elementos do seu estilo costumeiro: no primeiro plano do filme somos introduzidos, a partir da imagem de crianças brincando num campo de neve, até o interior de um café onde Nora (Jane Fonda) e Kristine (Delphinc Seyrig) falam de seus planos de casamento.

A uma e outra, a ironia de Ibsen reservará contradições e destinos divergentes. Nora. afetiva e sensual e Kristine, fria e objetiva, assumirão, ao final, destinos opostos: a sensual Nora. ferida em seu afeto pelo mesquinho comportamento do marido Thorvald, recusa a cômoda situação familiar e assume a sua identidade; Kristine. entre a miséria e a solidão, se reconcilia com o noivo outrora desprezado. Ambas conservam, no entanto, a coerência: a opção de Nora, o seu isolamento e a recusa em perder a afetividade indicam, como já foi observado, a separação interior de Ibsen da sociedade que ele imaginou poder construir à sua imagem e, a esta retirada dos poetas, parece sugerir o dramaturgo, sobrevirá apenas um vazio: "Eu vou me modificar", diz Thorvald Hellmer – representado no filme por David Warner. "Somente quando você perder uma de suas bonecas" responde Nora.

À Kristine cabe, na visão de Ibsen. a aceitação do mundo com sua fria objetividade dos negócios e dos interesses. uma posição próxima à dos habitantes do balneário da peça O inimigo do povo, com sua parva lógica do imediatismo. Henryk Ibsen é mais um lírico, um poeta às vezes sentimental. Enquanto Thorvald mantém a mesma postura ética dos dominadores, o personagem Krogstad se revela capaz de modificar o seu rancor de humilhado. Já o médico, Dr. Nils, é a sombra que o passado burguês decadente projeta sobre a consciência dos vivos em um fim de século preconceituoso e patriarcal. Joseph Losey, por outro lado, parece muitas vezes submergir diante da visão de crítico e poeta de Ibsen: na sequência final do filme, a discursividade sinuosa e metafórica do diretor se interrompe para dar lugar à força humana e poética da argumentação irretorquível de Nora Hellmer – interpretada com feminilidade e vigor pela ativista Jane Fonda – símbolo da alma da personagem a quem um século não deixou de engrandecer e fazer justiça.

 

Sérvulo Siqueira

 

Publicada no jornal O Globo em 5 de outubro de 1977