A lenda da flauta mágica

 

Uma bela metáfora da opressão e da liberdade. Narrado com precisão mas sem perder o sentido do encantamento, o filme nos reconduz à forma mais originária da história, fazendo do cineasta o equivalente contemporâneo do antigo narrador oral, capaz de criar em torno de si uma atmosfera de envolvimento quase tribal. The pied piper, filme americano de Jacques Demy rodado na Alemanha, é uma lenda medieval que transcorre no século XIV sobre um de seus mais terríveis inimigos: a peste bubônica.

Ao se dirigirem a Hamelin — Hanover já está então infestada pela peste — um grupo de  saltimbancos e um flautista se defrontam com o sistema de poder da cidade: o clero, o barão e o burgomestre, que estão mais preocupados com a construção de uma imponente catedral e o próximo casamento da filha do burgomestre com o filho do arruinado barão. Enquanto os poderosos se digladiam em suas ambições enfurnados em soturnos ambientes, no mundo exterior o alquimista Melius e seu assistente, o jovem Gavin, o flautista e os saltimbancos desbordam os fechados limites da tirania e do obscurantismo.

Utizando de forma irônica as categorias do maníqueísmo, Demy inverte a sua proposição tradicional mostrando que o bem é pura e simplesmente a representação de um poder que se apresenta como o detentor da verdade e o mal é de fato a projeção deste poder sobre seus inimigos, aqueles que encarnam o desejo de liberdade expresso por meio da busca e da produção do conhecimento. Para o burgomestre, apesar do flautista salvar sua filha da febre e livrar a cidade dos ratos, sua arte não vale a quantia pedida: este é um trabalho muito simples e consiste apenas em soprar uma flauta doce, para o artesão somente as guerras religiosas e a construção de uma catedral podem mover o mundo. Por sua vez, o alquimista Melius só se envolverá se o seu conhecimento puder ser empregado para fabricar um falso ouro em pó que sirva de soldo aos soldados que farão a guerra.

A morte ao sábio, imposta nas chamas da fogueira, revela como este sistema se apóia na eliminação da possibilidade do conhecimento mesmo que com o risco de sua própria destruição, porque o jogo fechado do poder está sempre voltado para suas lutas internas. Hamelin será arrasada pelos ratos e dela ninguém escapará, nem mesmo suas crianças — que representariam a possibilidade de uma continuação — conduzidas pelo flautista ao afogamento. Para esta situação Demy escolheu, em vez da seqüência de afogamento, um artifício mágico de imagem.

Jacques Demy retorna em A lenda da flauta mágica à proposição que informava o seu anterior Pele de asno, adaptado de Perrault: a modernização da fábula sem a perda do seu universo de encantamento. Utilizando um elenco de bons atores: Donald Pleasence como o barão, Jack Wild no papel de Gavin, Michael Hodern como o alquimista Melius, entre outros, além da música de Donovan e sua melodiosa flauta, ele certamente espera que as futuras gerações possam, "já que não serei lembrado por nenhuma grande descoberta, aprender mais com os meus erros do que com os meus acertos", como expressa o alquimista diante de seus inquisidores.

 

 Sérvulo Siqueira

 

Matéria publicada no jornal O Globo em 22 de fevereiro de 1978.