Os documentários do Etnodoc

 

Num dizer poético carregado de amargura, D. Fiota, que ainda se mantém como uma memória viva do linguajar quimbundo do idioma banto na região de Bom Despacho, em Minas Gerais, sintetiza − no documentário Eu tenho a palavra − o seu drama de filha de uma escrava alforriada e ainda não completamente liberta:

Fincou a barraca de lona. Nós dormimos nela dois dias. Três dias e o vento veio e carregou ela. Nós ficamos no tempo...

Fora do tempo – não como clima ou atmosfera mas no sentido cronológico – parecem ter ficado, no entanto, os vídeos produzidos pela última edição de documentários do Etnodoc, ao não conseguirem colocar em seu contexto histórico, social ou econômico os diferentes fenômenos que procuraram registrar e se mostrarem incapazes de explicar as origens e significados do tema escolhido para um público mais heterogêneo.

Conquanto possam ser considerados representativos das diversas regiões do País, os exemplares contemplados no edital não chegam a expressar a nossa rica diversidade cultural e em razão da repetição constante de depoimentos orais, cacoete de linguagem que se tornou hoje um modelo verdadeiramente paradigmático do documentário brasileiro, se mostram freqüentemente frios e distantes de seu objeto.

Vistos sob o ângulo temático, um número significativo de vídeos aborda os cultos cristão e africano – o que reflete a religiosidade da maioria da população – seguidos pelo registro de aspectos da herança indígena, do entretenimento e do lazer, pela interação entre diferentes culturas e etnias e pela abordagem de novos cenários de nossa realidade social e urbana, sem esquecer a presença da palavra como um elemento de preservação das culturas indígena, africana e ibérica.

Todo este acervo comportaria uma vasta gama de informação se melhor pesquisado, tratado com mais rigor e conhecimento do assunto e registrado por um viés que transcendesse o documento bruto, o que não ocorre na maioria dos vídeos realizados. Enquanto em alguns casos, velhos temas como as práticas de cultos africanos e cristãos são mostrados de forma repetitiva e sem nenhuma informação suplementar, em outros a novidade do tema se perde e é diluída pela ausência de um tratamento mais elaborado, tal como acontece nos documentários Baile do Carmo de Shaynna Pidori, Mbaraká a palavra que age de Edgar Teodoro da Cunha e Gianni Puzzo, Eu tenho a palavra de Lilian Solá Santiago e Quindim do Pessach de Olindo Estevam que, melhor explorados, teriam fornecido um conhecimento muito mais aprofundado acerca do papel do elemento linguístico na cultura e sobre a prática dos costumes como um fator de integração entre os diversos elementos sociais do País.

Em seu conjunto, os 16 vídeos da 2ª edição do Etnodoc revelam mais semelhanças do que diferenças, o que certamente contraria os propósitos originais de sua criação. A presença maciça do registro documental calcado no depoimento oral termina por impor ao audiovisual uma narrativa de corte predominantemente naturalista, em que o trabalho da câmera não faz mais do que ilustrar de forma singela o que acabou de ser dito. Limitado pela natureza testemunhal do depoimento e circunscrito pelo mero registro de algumas imagens captadas para efeito de comprovação do falado, a grande maioria dos documentários permanece no nível da reportagem, semelhante àquelas apresentadas diariamente pelos canais abertos de televisão, e se resume a um registro frio e acadêmico que não transmite a necessária emoção e nem ao menos cria uma empatia com o assunto mostrado.

De outra parte, a escassez de pesquisa e a carência de informações adicionais acerca do fenômeno tratado impedem que o espectador adquira uma visão mais crítica sobre aquilo que vê e possa assim compreender com mais clareza costumes, práticas religiosas e tradições de grupos sociais e comunidades com os quais não está habituado a conviver.

Em meio a esta heterogeneidade de assuntos – tratados em geral de forma tão homogênea – alguns trabalhos merecem ser particularmente analisados, tanto pela sensibilidade revelada na escolha do tema quanto pela eficiente – embora convencional – integração dos elementos temáticos com as possibilidades expressivas do audiovisual. Lá do Leste de Carolina Caffé e Satiko Gitirana Hijiki, um registro em tom espontâneo de uma imensa cidade-satélite de trabalhadores de baixa renda construída nos arredores de São Paulo – à semelhança dos bantustões da África do Sul – revela um olhar simpático para com pessoas vivendo na franja do sistema e que, ainda assim, se esforçam por desenvolver alguma forma de atividade criativa. Infelizmente, como na maioria dos documentários, falha por não colocar todo aquele enorme tecido social dentro do contexto do sistema produtivo e urbano brasileiro, que concentra a grande parte da população nas cidades e descarta os “malditos da terra” para a periferia. Cria, assim, uma espécie de micro-estética composta basicamente de planos médios e americanos, muitas vezes curtos e com um bizarro enquadramento, que não fornece uma visão geral do fenômeno retratado. De forma paradoxal e caminhando no sentido contrário a todos os princípios da narrativa clássica, a única visão de conjunto desta grande colméia humana está contida nos dois últimos planos do vídeo. Por outro lado, sua decupagem composta por planos tortos e mal enquadrados não apresenta nenhuma inovação de linguagem. Na mesma linha se inscreve No Rastro de Marcus Moura, uma outra boa idéia que não chega a incorporar à narrativa o variado repertório mítico, fabulístico, histórico e social deste conhecimento quase ancestral que se transformou numa atividade profissional no Nordeste brasileiro.

Dois documentários que tratam da integração entre diferentes culturas, Palavras sem fronteira de Luciana Hartmann e Quindim de Pessach, estão entre os melhores exemplos de realização de um trabalho – organizado em moldes tradicionais – que alcançam os limitados objetivos a que se propõem. Servindo-se da narrativa oral desfiada em sucessivos depoimentos, Palavras sem fronteira transmite o universo físico e social das fronteiras do Brasil com o Uruguai e a Argentina, o imaginário de seus habitantes e as peculiares relações lingüísticas que se estabelecem entre eles. Lamentavelmente, no entanto, suas qualidades de criação de uma atmosfera de convivialidade ficam comprometidas pela falta de propriedade das legendas que – à guisa de tornar mais clara a sua rica prosódia – provocam um significativo ruído de percepção no espectador em razão de sua má definição gráfica.

O mau uso das legendas é, aliás, um fenômeno recorrente na mais recente edição do Etnodoc e se repete também em No Rastro, Hoje tem alegria de Fábio Meira, Vento Leste de Joel de Almeida e Mbaraká a palavra que age, tanto pela sua curta duração quanto pela pouca visibilidade do tipo de letra escolhido, o que evidencia neste caso uma atenção menos acurada do diretor durante o processo de acabamento final do produto. Neste sentido, merece ser considerado Hoje tem alegria, deliberadamente construído dentro de uma narrativa pontuada por legendas, como forma de escapar ao unidirecionalismo dos depoimentos orais. Louvável como proposta, a estrutura dramática do vídeo não atinge o seu objetivo de criar emoção, que é uma condição necessária para a compreensão e o envolvimento do espectador com o universo do circo. Suas imagens aparecem então como uma ilustração de quadros isolados, com pouca ou quase nenhuma vinculação entre si, o que de certa forma inviabiliza o anseio de alcançar a pretendida alegria do título.

Quindim do Pessach é um documentário que, propondo-se mostrar os vínculos estabelecidos entre as culturas judaica e brasileira, realiza seus objetivos de narrar histórias a partir dos tipos humanos que apresenta. De forma convencional, em estilo quase jornalístico, o trabalho expõe os depoimentos de uma índia amazônica, duas afro-descendentes gaúchas e uma morena mineira, entre outros retratados, e sua contribuição à culinária judaica a partir da introdução de alguns ingredientes tropicais: o melaço da cana, a manteiga de garrafa, o queijo coalho, a pimenta, o tempero verde, a salsinha, o coentro, a farinha, uma menor quantidade de açúcar e uma maior quantidade de sal, o cominho, etc.

Soldados da Borracha de Cesar Garcia Lima, embora não possa ser considerado como uma expressão do patrimônio imaterial, já que os acontecimentos que relata fazem parte dos anais da História do Brasil, traz o depoimento em viva voz de alguns dos remanescentes deste impressionante e pouco conhecido episódio do qual participaram 55.000 nordestinos, convocados a produzir látex nos seringais do Acre, como parte do esforço de guerra destinado a promover a vitória dos Aliados na 2ª Guerra Mundial. Por meio de depoimentos, o vídeo registra o sacrifício heróico de alguns dos 8000 sobreviventes – apelidados de arigós, aves de arribação – que trabalharam em condições de quase escravidão, resgata o valor de sua contribuição ao País e a luta atual por um maior reconhecimento da parte do Estado.

A visão deste conjunto de vídeos de caráter documental não poderia deixar de levar a algumas considerações sobre a natureza estrita de sua linguagem, suas peculiaridades e contradições.

Como sabemos, o atual audiovisual é largamente tributário do cinema, que nasceu sob a égide do documentário como a mais bem acabada afirmação do realismo de sua época. Pouco tempo depois, o mágico Georges Meliés introduzia em seu repertório um outro componente determinante da sua narrativa: a fantasia, a ilusão de realidade.

Em comentário espirituoso de um de seus personagens em La chinoise, o cineasta Jean-Luc Godard lembra que alguns documentários dos Irmãos Lumière, como a chegada de um trem na estação ferroviária ou a saída dos operários de uma fábrica, se parecem hoje mais a uma obra de ficção, com sua atmosfera impressionista característica do final do século XIX. Já os filmes de Meliés, entre eles a sua fantástica Viagem à Lua, estariam muito mais próximos da nossa contemporaneidade e poderiam ser vistos como um registro documental do processo de evolução do homem em seu sonho ancestral rumo ao espaço.

Sem necessariamente tomar esta boutade como um axioma, é certo que ao longo do tempo o documentário – em sua busca por uma crescente verossimilhança – vem incorporando a representação dramatizada dos acontecimentos. Por sua vez, em seu afã de dar uma maior credibilidade à narrativa, a ficção se esforça por tornar a sua imagem cada vez mais graficamente realista, representando-a de forma documental.

Em pleno florescer do século XXI, chegamos hoje ao momento em que estas duas tendências estão cada vez mais próximas; a ontologia realista do documentário incorpora a vocação imaginária da ficção e esta, por sua vez, assimila o realismo da sua outra parte: a realidade é cada vez mais imaginada e ficcionalizada enquanto a fantasia se torna crescentemente verossímil e realista.

Se os limites estritos se rompem e se podemos passar do imaginário ao real – como em JFK, de Oliver Stone, por exemplo – ou do meramente documental ao fabulístico – como em Bodas de Sangue, de Carlos Saura, ou em A Entrevista de Fellini, para citar apenas alguns exemplos – então é porque essas duas formas de discurso, em sua busca por um maior poder de persuasão, não se contrapõem mas – como os átomos da mecânica quântica – se complementam.

A absorção desses novos códigos da linguagem certamente enriqueceria as próximas edições do Etnodoc, possibilitando aos realizadores a produção de uma dramaturgia que viesse a integrar a informação puramente documental à criação de uma atmosfera dramática baseada na representação e na fantasia. Este docudrama – que já é exercitado por vários realizadores no Brasil e no exterior – provavelmente levaria à renovação do documentário que hoje está sendo realizado no País.

Por fim, uma questão que embora não sendo propriamente estética ou cultural está profundamente ligada à política de realização de filmes e vídeos no Brasil. Em tempos de transparência, quando a cidadania tem cada vez mais acesso à informação e às contas públicas, é necessário discutir a estratégia da participação do Estado na produção cultural do País.

Um programa público de patrocínio de documentários que disponibiliza recursos no valor de até R$1.200.000,00 (hum milhão e duzentos mil reais) pode e deve se questionar se estes recursos estão sendo bem empregados.

Da mesma maneira, os espectadores têm o legítimo direito de fazer indagações quanto aos recursos de produção empregados em vídeos como A Boca do Mundo de Eliane Costa, Curandeiros do Jarê de Marcelo Abreu Gois, João da Mata falado de Ana Stela Cunha ou Dona Joventina de Clarisse Kubrusly, Milena Sá e Julia Barreto, por exemplo. Com poucas locações, um pequeno número de sequências, nenhum trabalho de recriação de ambientes e de cenários e uma restrita documentação de alguns rituais realizada em nível rusticamente naturalista, estes quatro vídeos – coincidentemente todos debruçados sobre fenômenos religiosos – não passam de um tosco registro que poderia ter sido produzido por alunos do ensino médio como um trabalho de final de ano.

Quanto foi gasto na realização destes trabalhos? Será que o produto final compensou o dinheiro investido em sua realização? Ou, ampliando ainda mais este debate, estará o nosso rico patrimônio imaterial sendo bem preservado com trabalhos deste porte?

As relações entre o Estado e a produção cultural, que se tornaram mais intensas desde os anos 30 do século passado, sempre foram objeto de acalorada polêmica embora não se possa deixar de considerar que tenham gerado grandes dividendos para a Nação. O conceito de patrimônio histórico – levantado ainda nos tempos do Estado Novo getulista por Rodrigo Mello Franco de Andrade – representou um paradigma revolucionário para os países que haviam sido colonizados pelas nações européias e expropriados de seus bens materiais e, em razão disto, foi adotado por muitos países emergentes em todo o mundo. Na mesma época, a criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), sob a direção do antropólogo Edgar Roquete-Pinto, permitiu a incorporação do talento de Humberto Mauro e a produção de alguns dos mais belos documentários do nosso cinema.

Duas gerações depois, durante o governo militar que regeu o Brasil de 1964 a 1985, a Embrafilme também viria a desempenhar um papel decisivo no cinema nacional do período.

É história corrente no meio cinematográfico que durante o período do governo Costa e Silva, representantes da classe se reuniram com o ministro do Planejamento Hélio Beltrão – um homem ligado ao setor cultural por via de sua mulher, a arqueóloga Maria Beltrão – e lhe propuseram a criação de um órgão, nos moldes da Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), que tivesse por objetivo estimular a produção cinematográfica no Brasil. O Ministro teria se mostrado reticente, já que a seu ver a entrada do Estado no setor corromperia o livre exercício da atividade. Os defensores da participação estatal contra-argumentaram.

A História mostra que o Ministro teria sido voto vencido ou foi, ao final, persuadido. Um participante da reunião lembra que Hélio Beltrão, velho conhecedor da natureza paternalista do Estado e afeito ao caráter em geral oportunista e astuto dos empresários brasileiros, teria tido uma última e profética palavra:

- “Pois é, mas se um dia o Estado deixar de apoiar o setor, isto vai levar ao fim do cinema no Brasil!”.

Como se sabe, a entrada do Estado não acabou com o cinema no Brasil. Ao contrário, ela o estimulou por algum tempo. Mas foram o fim dos financiamentos mal explicados e com critérios obscuros – ainda no Governo Sarney – e a liquidação da Empresa – determinada pelo governo subseqüente – as razões que levaram o cinema brasileiro a uma queda drástica para apenas dois filmes produzidos em 1991.

Passado já quase um século da instauração do modelo intervencionista do Estado na vida cultural do País, qual é o balanço que se pode fazer do papel que cumpriu e quais foram os seus resultados? Estaria o modelo atual de participação do Estado, baseado nas leis de incentivo fiscal e estímulo à produção, inovando em relação às concepções anteriores?

Finalmente, em tempos de MacWorld – a nossa aldeia global em que nos hospedamos nos hotéis Hilton, comemos no McDonald’s e nos divertimos na Disneylândia – seria legítimo perguntar como é que os produtores e diretores brasileiros compreendem efetivamente o conceito de patrimônio imaterial? Por outro lado, o limite máximo de duração – estabelecido em 26 minutos - dos documentários do Etnodoc não se constituiria num obstáculo para o livre exercício de criatividade dos autores?

Ao se escolher – não propriamente de forma aleatória, já que se trata de dois autores comprometidos com alguma renovação da linguagem – os trabalhos de Andrea Tonacci, Benzedeiras de Minas, e Arthur Omar, Folia no Morro, verifica-se que mesmo estes exemplares da primeira edição do Etnodoc não foram além de um simples registro. O que teria determinado uma linguagem tão asséptica, apoiada num caso em depoimentos tomados ao vivo das protagonistas e, no outro, rusticamente apoiada na gravação em som e imagem de uma representação coreográfica?

Pode-se imaginar que – se houvesse mais tempo – talvez os documentários pudessem ter apresentado uma maior riqueza, tanto visual quanto dotada de maiores informações antropológicas e sociológicas, com imagens das benzedeiras em ação, por exemplo, e dados suplementares sobre a folia de reis, sua história, desenvolvimento, etc...

Por outro lado, como ensina a sabedoria popular, os melhores perfumes se encontram nos menores frascos.  

O que nos reservará a próxima edição de documentários do Etnodoc?  (21/03/2012)

 

Sérvulo Siqueira