28 de
dezembro de 2009
As décadas de 60 e 70 foram o momento em que a 7ª Arte do século passado
produziu algumas das suas mais belas obras. Nesse período afloraram,
entre outros, a nouvelle vague francesa, o novo cinema americano, inglês
e alemão, a grande escola italiana, o cinema japonês, a renovação russa
de Paradjanov e Tarkovsky, além das várias manifestações
cinematográficas do Terceiro Mundo na América Latina, na África e na
Ásia. O cinema brasileiro se inseriu nesse processo de grande
criatividade vivida no período. No entanto, quando consideramos as obras
cinematográficas produzidas no Brasil, o número de filmes
extraordinários é ainda pequeno se comparado à grande arte fílmica da
Europa – especialmente aquela produzida na Itália, Alemanha, França e
União Soviética –, dos Estados Unidos e do Japão.
No Brasil, o golpe militar de 31 de março/1º de abril de 1964 se
confrontou diretamente com os movimentos que estavam ligados às
propostas nacionais e populares do governo deposto de João Goulart. O
nascente Cinema Novo brasileiro – tanto pelos seus explícitos ideólogos
como Glauber Rocha quanto pelo discurso de obras como
Cinco Vezes Favela,
Vidas Secas, O Desafio,
entre muitas outras – propunha uma visão crítica da realidade
brasileira. A história das interdições da censura, dos filmes mutilados
ou proibidos mostra como as lutas no campo e nas cidades, a reforma
agrária, a corrupção política, a perda das nossas riquezas para o
estrangeiro não eram temas do agrado do regime militar que viria a se
instalar por 21 longos anos no país.
Foi com o movimento do Cinema Novo que nasceu o projeto de uma estatal
brasileira dedicada à chamada 7ª Arte, o que de alguma forma
correspondeu ao modelo cultural dos militares, de caráter
predominantemente exportador e controlador da sociedade. Conta a
história que ao final da reunião com os cineastas mais importantes da
época, o então ministro do Planejamento Hélio Beltrão teria observado
que a criação de uma empresa como a Embrafilme condenaria o nosso cinema
a uma fatal dependência do Estado. Esse fato realmente ocorreu – sob uma
forma ainda mais contundente de empreguismo, tráfico de influência,
favorecimentos ilícitos, desvios de recursos e corrupção aberta.
Apesar dos obstáculos, fomos capazes de produzir filmes de grande valor
cultural e estético como Tenda dos
Milagres, Como Era Gostoso o Meu Francês e
Memórias do Cárcere de Nelson Pereira dos Santos;
O Dragão da Maldade Contra o Santo
Guerreiro e Di Cavalcanti
de Glauber Rocha; Os Inconfidentes
e O Homem do Pau-Brasil de Joaquim Pedro de Andrade;
São Bernardo e
Eles Não Usam Black-Tie de Leon Hirzsman;
O País de São Saruê de Vladimir Carvalho, Iracema de Orlando Senna e
Jorge Bodansky; A Queda de Ruy
Guerra; Pixote, A Lei do Mais
Fraco de Héctor Babenco; Pra
frente, Brasil de Roberto Farias;
Inocência de Walter Lima Jr.;
Cabra Marcado para Morrer de
Eduardo Coutinho; A Marvada Carne
de André Klotzel; Sargento Getúlio
de Hermano Pena; Cabaré Mineiro
e Noites do Sertão de Carlos
Prates Correia; Bang Bang de
Andrea Tonacci, entre outros.
De outra parte, a entrada da Embrafilme na atividade de produtora e
distribuidora de filmes nacionais padeceu em muitos casos dos limites
burocráticos impostos pela natureza do serviço público, que conflitavam
com o dinamismo necessário ao exercício da linguagem cinematográfica.
Decisões e medidas que muitas vezes requeriam uma ação rápida eram
obrigadas a passar por pareceres e autorização de departamentos –
situação que pode ser considerada rotineira dentro da burocracia estatal
– mas que frequentemente causava transtornos e prejuízos de toda a ordem
à produção de filmes. A máquina burocrática da Embrafilme ofereceu
alguma contribuição para a promoção do cinema brasileiro no exterior, no
entanto isto não foi suficiente para torná-lo conhecido além de alguns
círculos restritos. Filmes como
Dona Flor e Seus Dois Maridos de Bruno Barreto;
A Dama do Lotação de Neville
de Almeida; e Pixote, A Lei do
Mais Fraco de Héctor Babenco podem ser considerados exceções e seu
sucesso se deve à temática de grande apelo social e à participação de
estrelas de alguma expressão popular.
Se os filmes do Cinema Novo não se prestaram ao propósito militar de
divulgar a imagem de uma sociedade brasileira mais equilibrada e
harmônica, ao menos cumpriram a sua missão de propagar a visão de um
país industrialmente moderno e avançado, o que também correspondia aos
anseios do regime vigente. Por outro lado, os inúmeros prêmios que
nossos filmes arrebataram durante tantos anos também contribuíram para
reforçar – de forma involuntária em muitos casos – o lema difundido na
época de que “exportar é o que importa”. Esse fato se tornou ainda mais
acentuado porque, sabotado no país pelos exibidores nacionais, o cinema
brasileiro foi obrigado a buscar uma compensação financeira no
exterior.
Sua sobrevivência por um período superior a vinte anos em condições
política e economicamente adversas foi mais uma amostra das contradições
da nossa sociedade, refletidas tanto na heterogeneidade dos diversos
estilos e gêneros – que iam dos discursos contestadores e anarquistas e
do grotesco das chanchadas ao nacionalismo ufanista e ao pornográfico
disfarçado – quanto na evidente discrepância entre a qualidade dos seus
mais diversos produtos.
Embora alardeado com frequência, não se pode dizer propriamente que foi
a Embrafilme que abriu as portas para o cinema brasileiro no exterior.
Como ocorre em muitos casos, o Estado chegou um pouco depois,
especialmente quando alguns filmes brasileiros já haviam conquistado
grandes prêmios em festivais de importância como a Palma de Ouro em
Cannes para O Pagador de Promessas,
de Anselmo Duarte, em 1962, também indicado para o Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro em 1963, e detentor de inúmeros outros galardões no
exterior. Este caminho já havia sido aberto por
O Cangaceiro (1953), de Lima
Barreto, que se tornou célebre pela música
Olê Muié Rendeira, ganhadora do prêmio de melhor trilha sonora em
Cannes. Outros filmes como Vidas
Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos;
Os Fuzis (1964), de Ruy
Guerra; Deus e o Diabo na Terra do
Sol (1963) e Terra em Transe
(1967) de Glauber Rocha também obtiveram reconhecimento em festivais e
chamaram a atenção para o cinema do nosso país. Nos anos 80, à medida
que os prêmios diminuíam, cresciam as ideologias de mercado
consubstanciando a observação de Rogério Sganzerla acerca do surgimento
de um cinema novo rico, em que os antigos ideais de renovação e mudança
eram substituídos por um crescente desejo de segurança e acomodação à
sombra do milagre econômico e do paternalismo do Estado.
O esgotamento dessa estrutura no início dos anos 90 ocorreu em razão da
contundente emergência do novo modelo neoliberal – acelerado pela
falência do regime soviético – e a partir de pressões dos meios de
comunicação nacionais como as Organizações Globo e a Folha de S.Paulo e
do lobby americano da Motion
Pictures Association of America (MPAA), que no Brasil assumiu o nome
de fachada de Associação Brasileira de Cinematografia (ABC). O
desmantelamento do então dinossauro da Embrafilme acabou por atender
assim aos interesses da burguesia, que desejava o fim do clientelismo
cultural do Estado brasileiro e às pressões dos grandes estúdios de
Hollywood, cujo objetivo consistia principalmente na completa
privatização da cultura nacional e na extinção da distribuidora da
Embrafilme, que abarcava no momento um terço do mercado de filmes no
Brasil.
A partir do final dos anos 60, a MPAA – o sindicato patronal da
indústria cinematográfica americana que reúne a Warner, Columbia, Fox,
Metro, Paramount, Universal, United Pictures, Walt Disney Studios, além
de algumas produtoras independentes – contratou Jack Valenti, um
ex-subsecretário do governo Kennedy, como seu presidente, com a missão
de viajar pelo mundo e exercer pressões sobre o governo e o parlamento
de países visando “suavizar” a legislação que favorecia os cinemas
nacionais, para permitir a entrada sem restrições do cinema americano.
Pode-se dizer com certeza que, com a extinção por decreto da Embrafilme,
este poderoso lobby obteve uma grande vitória.
Apesar de todos esses temores norte-americanos, do ponto de vista da
concorrência entre o filme nacional e o estrangeiro não houve na verdade
uma grande descontinuidade entre o período antes do golpe e o vivido
durante o regime militar. Na longa relação entre o filme nacional e o
estrangeiro, o nosso cinema experimentou quase sempre diante do produto
alienígena uma situação de inferioridade em termos técnicos e
industriais, artísticos e em número de filmes produzidos. Considerando
porém o período posterior aos anos 80, o momento atual é um dos piores
que temos sofrido, não tanto em razão do número de longa-metragens
realizados – estimado em torno de 70 a 80 produções em filme e vídeo
digital – mas sobretudo por causa da baixíssima receptividade de público
que os nossos filmes alcançam.
Parte desta situação numérica desfavorável era compensada no passado
pela qualidade de alguns dos trabalhos e, ainda mais especialmente, pela
coragem dos nossos diretores em enfrentar temas de grande atualidade e
risco como a distribuição de renda no Brasil, as liberdades e as
garantias do cidadão, o direito de greve e a violência do aparato
militar. Sempre que esses filmes tiveram a oportunidade de chegar ao
grande público – escapando aos guetos dos cineclubes e às exibições de
pequenos circuitos – encontraram uma calorosa recepção. Algumas dessas
películas como Braços Cruzados,
Máquinas Paradas (1979), de Roberto Gervitz e Sérgio T. Segall, ao
registrarem episódios pouco divulgados da História do Brasil, ajudaram a
construir a legenda que ainda alimenta a popularidade de líderes
políticos de hoje.
Sabemos que o período que compreende a existência da Embrafilme
caracteriza um dos momentos mais férteis da história do cinema
brasileiro, não apenas do ponto de vista da quantidade de filmes
produzidos mas também por ter sido aquele que proporcionou um intenso
debate sobre a identidade e os diferentes modos do nosso fazer
cinematográfico. Nessa época, foi também possível discutir alguns
caminhos para o cinema no Brasil. Devemos buscar uma estética e uma
dramaturgia nacional ou seria melhor adaptar e aperfeiçoar o modelo de
cinema consagrado nos Estados Unidos e Europa? O cinema brasileiro deve
se inspirar em temas nacionais e históricos ou propor uma estética de
caráter essencialmente popular como o carnaval, o samba, o futebol,
etc.? É mais importante conquistar o mercado com uma maior quantidade de
películas, mesmo que isto não implique necessariamente em uma melhor
qualidade de filmes? Estas e muitas outras questões foram levantadas à
medida que o cinema brasileiro, confrontando a resistência da própria
população do país e o boicote de distribuidores e exibidores
tradicionalmente ligados ao cinema estrangeiro, gerava uma grande
variedade de produtos e – em meio à luta pela sua sobrevivência e à
procura da sua identidade – se perguntava sobre o(s) caminho(s) a
seguir.
Com suas salas de exibição controladas em grande parte pelas cadeias
americanas, maciçamente instaladas em shopping centers situados em
bairros de poder aquisitivo mais elevado, o cinema brasileiro vive hoje
confinado a um gueto em seu próprio país, ocupando pouco mais de 10% do
mercado cinematográfico do Brasil. Desgraçadamente, nossos filmes
somente conseguem estabelecer um pequeno e circunstancial diálogo com o
seu público natural, que prefere as novelas de tevê. A única alternativa
à situação de flagrante desigualdade nesta peleja de Davi contra Golias
ou, para colocarmos em termos do mundo atual, da luta de um povo cujo
espaço físico e cultural foi invadido por um complexo mais poderoso,
seria o recurso a uma criatividade cada vez maior e a busca de novas
formas de linguagem e novos modos de percepção que tenham como lastro a
expressão de nossa cultura e a peculiaridade de nosso modo de ser. Esta
tentativa já foi ensaiada nos 60 e 70 e poderá ser retomada. Para isso,
será preciso nos libertarmos da camisa de força das limitações e
estereótipos que nos impõe o padrão dominante. A aceitação desse modelo
nos sujeita à condição de replicadores de um produto meramente similar,
ou seja, a de fabricantes de itens de segunda linha, principalmente
quando consideramos que foram os europeus e americanos os criadores da
chamada Sétima Arte e aqueles que estabeleceram os seus paradigmas a
serem seguidos.
O cinema é uma arte mas é também uma indústria e pode-se dizer com
certeza – dado o enorme vazio atual de grandes obras de arte no mundo –
que o lado mais claramente industrial do cinema vem prevalecendo no
momento sobre o seu aspecto propriamente estético. Se, de um lado, as
novas tecnologias abriram o caminho para o exercício de uma produção
audiovisual independente, por outro lado o controle oligopolístico da
distribuição e exibição dos filmes e vídeos ficou ainda mais restrito ao
poder econômico das grandes corporações. Visto como uma atividade
industrial, os imensos tentáculos do show-business cinematográfico
abarcam desde a produção dos equipamentos de registro da imagem como
câmeras de filmagem e de gravação em vídeo ou disco rígido; material
sensível de registro como películas ou fitas; computadores de última
geração e softwares dedicados para edição, criação de efeitos especiais,
mixagem e finalização dos produtos audiovisuais; estúdios adequadamente
equipados para a filmagem ou gravação de cenas e laboratórios munidos de
scanners de alta resolução para o processamento das imagens e seu
acabamento final.
Depois de pronto, este produto audiovisual com alto valor agregado
necessita contar com uma sofisticada rede de distribuição que o
transforma numa commodity de grande valor no mercado, mercê – é claro –
das várias estrelas de renome nacional e internacional que apresenta em
seu elenco, desde a direção, a música e a cenografia até a
interpretação. Finalmente, esta produção cinematográfica tem que contar
com uma vasta rede de pelo menos 1.500 salas de exibição em todo o mundo
para que possa ser vista nos centros mais influentes do planeta. Se
todos – ou uma boa parte – desses fatores ocorrerem, aí talvez possamos
competir com a grande indústria do cinema americano, cujo negócio como
um todo gera uma renda de pelo menos US$ 80 bilhões no mundo inteiro. No
momento, o montante da atividade cinematográfica brasileira não vai além
dos R$ 100 milhões.
Tentativas de imitação – visando conquistar os mercados do Norte ou
obter o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – se parecem às famosas
maquiladoras mexicanas, plantas de produção estabelecidas ao sul dos
Estados Unidos com mão de obra barata, que produzem mercadorias para a
população americana de baixo poder aquisitivo. Na verdade, pode-se dizer
que esta realidade já está ocorrendo aqui e agora quando assistimos ao
maior consórcio de entretenimento do planeta – a HBO – se valer de
patrocínios da Agência Nacional de Cinema (ANCINE) para produzir séries
destinadas à televisão a cabo a partir de temas de nossa cultura, que
entram como substitutivos dos filmes brasileiros que não vemos.
Emergindo nos dias de hoje como produtora e exibidora de filmes falados
em português e inglês, a Rede Globo de Televisão representa a epítome
deste modelo e – na condição de empresa estrangeira operando no Brasil –
tem a sua matriz estética completamente dependente da metrópole
americana do Norte. Sua estrutura serializada de show-business calcada
sobre o folhetim e os diversos gêneros (drama, musical, comédia de
costumes, policial, etc.) segue o padrão hollywoodiano, muito
bem-sucedido comercialmente no mundo inteiro mas que esmagou o
surgimento e o desenvolvimento de cinemas nacionais na Ásia, África,
América e também na Europa.
Tanto por seu caráter de empresa estrangeira – naturalmente contrário ao
desenvolvimento de um cinema brasileiro voltado para os nossos valores
culturais – quanto por seu compromisso com uma estética apoiada na
serialização dos folhetins de conteúdo essencialmente melodramático e
alienante e na estratificação e compartimentação dos mais diferentes
gêneros de filmes que produz, pode-se dizer que a Rede Globo de
Televisão é verdadeiramente inimiga de um cinema brasileiro que reflita
a diversidade da nossa cultura e os nossos mais profundos anseios de
sermos uma nação livre e generosa para todos os seus cidadãos. No
entanto, infelizmente a nação ainda tem um longo caminho a percorrer
para que isto aconteça. No momento, conforme afirmou Héctor Babenco, “o
Brasil é o país que a Rede Globo quer que o Brasil seja”. E isso parece
que se aplica também ao nosso cinema, onde proliferam os produtos que
privilegiam os temas mais superficiais, de apelo fácil ao público, as
comédias que tratam de algumas questões novas de comportamento ou os
documentários, que são como reportagens no estilo dos programas Globo
Repórter de sexta-feira à noite.
Nos últimos 40 anos, o processo de corrupção se acentuou e se sofisticou
no Brasil e o nosso cinema não permaneceu alheio a isso. Durante os anos
“heroicos” da Embrafilme, esta velha prática endêmica se dava
especialmente por meio dos favorecimentos proporcionados pelo regime
militar, do tráfico de influência, do apadrinhamento – fulano que é
parente de sicrano ou indicado por beltrano – mas não se limitava a
esses procedimentos. Pode-se dizer – lembrando a célebre frase de
Hamlet: se isto é loucura, ao menos há método nela – que havia, por trás
dos recursos caoticamente distribuídos, um projeto de poder. Filmes que
contavam com o apoio das autoridades políticas e militares dispunham
então de largos recursos enquanto outros – talvez muito melhor
elaborados – nem sempre recebiam maior atenção.
Nos tempos da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), circulava nos
corredores da empresa uma história que – falsa ou verdadeira – ilustra
admiravelmente esse processo:
No final da tarde de uma sexta-feira um famoso produtor e diretor de
cinema entra na antessala do diretor-geral da empresa mas logo constata
que todos já foram embora: não mais se encontram no escritório o próprio
diretor-geral nem o(a) chefe de gabinete. Relatam muitas testemunhas que
logo nas primeiras horas da manhã da segunda-feira um quadro de avisos
da assessoria de imprensa da companhia já dava o projeto trazido pelo
famoso diretor – e que sequer tinha sido oficialmente entregue – como
aprovado para financiamento de produção!
Da mesma forma, houve muitos casos de filmes com orçamentos super
inflacionados, apartamentos e casas comprados com recursos de películas
que não produziram nenhum lucro, prestações de contas cujos dados nunca
puderam ser comprovados, etc.
Tempus
fugit, talvez não haja mais essas
práticas mas os favorecimentos continuam a existir hoje, por meio do
extremo refinamento dos processos de captação da Lei Rouanet – que tende
a contemplar os projetos das empresas mais poderosas – ou das licitações
para patrocínio propostas à ANCINE. Em qualquer um dos casos, o Estado
continua a ser o promotor de mais de 90% da atividade cultural do país.
Tanto por intermédio dos projetos diretos do ministério da Cultura
quanto através de estatais como a Petrobras, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Eletrobrás, as empresas
públicas dos estados, sem falar no apoio das prefeituras, a cultura no
Brasil – e ainda mais especialmente o cinema brasileiro, que mal
consegue atrair a atenção de 8,8 milhões de espectadores anuais em uma
população de quase 200 milhões de habitantes – necessita
desesperadamente do apoio do papai-Estado.
Nos dias de hoje, a ANCINE, a nova agência reguladora do cinema
brasileiro – na mesma linha das suas congêneres americanas e das pouco
eficazes Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Agência Nacional
de Águas (ANA), Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), Agência
Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional do Petróleo
(ANP), etc. – confirma a consolidação da privatização da cultura, uma
estratégia que começou a ser colocada em prática desde o fortalecimento
do modelo neoliberal e que favorece a continuidade do cinema brasileiro
como dependente do modelo hegemônico americano. Na falta de grandes
obras cinematográficas, a ANCINE privilegia a exportação de películas
que enfatizam de maneira folclórica, superficial e fora de contexto as
nossas vicissitudes como a pobreza, a miséria, a violência, a
religiosidade exacerbada, sem discutir as causas e a responsabilidade do
Estado e da sociedade. Nesse sentido, a sua política representa a exata
continuação da antecessora que foi extinta.
Olhando em retrospecto, verifica-se que toda esta barafunda cultural
caminhou – como diria Darcy Ribeiro – aos trancos e barrancos. Há, no
entanto, um risco – já evidenciado em algumas tentativas de
estabelecimento de uma política estatal mais dirigida – de canalização
dos recursos públicos para um projeto cultural unívoco voltado para
interesses de poder. Num país sem uma grande tradição democrática como o
Brasil, uma tentativa de colocar ordem na pluralidade – ainda que
caótica – das nossas manifestações culturais, ou a instituição de um
modelo dirigido para produções de caráter nacional voltadas para grandes
mercados, pode levar a uma paralisação da nossa criatividade e à
formação de uma pseudo-elite cultural parasitária e entorpecida, tal
como já ocorreu em outros tempos e lugares.
Sérvulo Siqueira |