Jesus, a política e o amor segundo Franco Zeffirelli

 

Entrevista a Sérvulo Siqueira

 

Para cumprir um programa que incluiu desde o comparecimento a bailes de fantasia até um intenso trabalho de divulgação do seu último e momentoso filme, o imenso afresco da vida de Jesus de Nazaré, esteve no Brasil por alguns dias o realizador teatral e diretor de cinema Franco Zeffirelli. Em sete horas de filme, foram percorridos os passos do Messias, prometido e rejeitado pelos judeus. Orçada em 12 milhões de dólares (Cr$ 192 milhões) a obra foi inicialmente exibida na televisão italiana, onde alcançou a audiência de 83,5%. Para obter tanto sucesso foram necessários nove meses de filmagem, com locações principalmente no Marrocos e na Tunísia, e foi arregimentado um elenco de grandes astros. Big business, nas palavras de Zeffirelli, o filme, somente para a televisão americana NBC, foi vendido por 21 milhões de dólares (Cr$ 337 milhões). Na suite presidencial de um hotel da orla marítima, onde estava hospedado, o diretor – que com apenas quatro filmes se tornou um nome mundialmente conhecido – falou sobre o mundo atual, os jovens, a quem seu filme é especialmente dirigido, antigas lembranças de colaborações, e principalmente o amor, a energia do mundo e, segundo diz, tema principal de sua obra.

 

- Fale de seu trabalho com Lina Wertmuller.

– Lina trabalhou comigo no roteiro de Irmão sol, irmã lua. Depois eu dirigi no teatro uma comédia sua que fez muito sucesso na Itália. Como diretora, ela é curiosa, uma escritora nata, É muito generosa, apaixona-se por tudo o que faz. Mas  tem  necessidade de alguém que a dirija, ela produz muito mas grande parte só serve para jogar fora. Como colaboradora, é magnífica, dá muitas idéias e você deve decidir o que melhor lhe serve. Quando trabalha sozinha e tem que decidir por ela mesma não faz boas coisas. Nós dizemos na Itália que ela é uma diretora que precisa de um diretor.

Há coisas em que eu gostaria de tocar e que pouca gente sabe. Como é que você se tornou partigiano na Segunda Guerra Mundial?    .

– Em julho de 1943, para fugir ao serviço militar, eu me engajei nos partigianos, que instituíam um movimento patriótico, não político, que lutava pela libertação da Itália, compreende? A alternativa para escapar do serviço militar fascista era lutar ao lado dos partigianos. Os comunistas depois transformaram o movimento em político, mas inicialmente não era político, era a luta pela democracia na Itália. Tanto era patriótico que a nossa bandeira era a bandeira da Itália. Eu lutei 18 meses como partigiano e depois fui trabalhar com os ingleses. Era tradutor, traduzia coisas de muitos prisioneiros que haviam escapado de campos de concentração: poloneses, ingleses, brasileiros...

Aqui no Brasil você é bem mais conhecido por suas posições religiosas de que por suas posições políticas. Como é que você vê essa experiência como partigiano, dentro das suas posições atuais e à luz dos seus filmes?  

Era o meu dever. Era inevitável. Depois esqueci tudo isso, não quis medalhas nem condecorações.

Por que você não coloca essa experiência nos seus filmes ?

Realmente há muitas histórias belíssimas, apaixonantes. Mas eu não posso mais ver a Resistência. Isto já me tocou muito. Foi uma experiência maravilhosa, mas quando se cumpre o dever não há necessidade de ficar falando sobre isso. Muitas vezes se faz uma boa ação e se fica falando a vida toda sobre ela.

Você trabalhou com Visconti, não é? O que você poderia dizer sobre ele?

– Visconti era um grande mestre, me ensinou muitas coisas. Eu e Francesco Rosi trabalhamos com ele em três filmes: Ossessione; Belíssima e La terra trema. Ele nos ensinou tudo sobre a dignidade da nossa profissão. A coragem, a arrogância e até mesmo a soberba. Visconti era muito orgulhoso, ele queria sempre o melhor. E ele passou esta arrogância para nós. Eu, então um jovem florentino, tive condições de trabalhar alegremente. Para mim isso foi muito importante porque o sucesso na verdade nunca me importou, procuro sempre escapar a ele, não quero me tornar um monumento. No teatro, depois da primeira exibição, seja um triunfo ou um fracasso, nada mais me interessa. Eu não quero ser um prisioneiro do labirinto do sucesso. Quantas vezes fiz mal uma coisa e ela foi sucesso!

Nesses filmes, como você sentia a interferência das posições políticas de Visconti?

 Visconti sempre foi muitas coisas ao mesmo tempo: era rico, estabelecido, aristocrata. Uma vez eu o vi demitir duas camareiras porque elas não haviam penteado um gato.

Como está sendo feita a comercialização de Jesus de Nazaré, um filme que custou caro, com um elenco famoso? O filme dirige-se a um grande público, não é?

O filme tem sete horas de duração e custou 12 milhões de dólares (Cr$ 192milhões), portanto quatro milhões (Cr$ 64 milhões), para cada parte de 2h30m, Isto não significa nada, absolutamente nada.

- O filme participa de certo ressurgimento do Cristianismo? E se isto é verdade, o   Cristianismo precisaria ser realmente “reavivado”? Quando se vê o filme, nota-se que ele tem um caráter proselitista, é uma obra que quer conquistar as pessoas, dentro de uma perspectiva cristã.

O filme que eu deveria fazer? Propaganda marxista? Eu sou católico, sou cristão. Defendo a propaganda das minhas idéias, da minha fé. Somos livres para crer ou não crer. Sou bem educado, adotei todas as posições dogmáticas. 0 espectador não é massacrado, ele deve acreditar por si mesmo, não é obrigado a crer. No filme de Pasolini — com todo o respeito — havia anjos, ele colocava anjos e incutia a fantasia. No meu filme, eu acho que as coisas se compreendem melhor. O filme do Pasolini era a lenda ilustrada. Quando você viu o filme dele? Vá vê-lo de novo. Não é um belo filme. Sobretudo, não é um filme católico e eu não suporto mostrar anjos (Cantarola...) A fé não é aquilo. A fé é acreditar sem ver. “Acredito no coração, não em Jesus”, diz Tomé no final. Aí Jesus responde: — “Você diz creio porque tocou, mas bem-aventurados são aqueles que acreditarão sem terem visto”.

Há uma frase numa peça de Max Friscb que diz o seguinte: “O melhor convencimento, a melhor persuasão é a camuflagem“. Eu acho que o seu filme assume isto, ele não revela desde o início uma perspectiva cristã, mas pouco a pouco vai nos convencendo e termina por se mostrar como uma obra integrada no “corpus” do Cristianismo. Ele pretenderia catequizar de novo os jovens?

Os jovens não estão sendo educados para o Cristianismo. Há uma grande confusão na Igreja. A Igreja Romana foi atingida por uma crise muito difícil desde o Papa João XXIII. Por isso não existe uma diretiva muito precisa para os jovens. E eles sofrem com essa falta.

Os jovens na Itália parecem estar aderindo aos movimentos radicais. Será verdade?

Isto é devido à falta de ideais. A Igreja perdeu nestes últimos 20 anos sua função de educadora dos jovens. Hoje, há uma geração de jovens que não sabem, não conhecem o Evangelho. Foi por isso que eu resolvi contar uma historia muito clara de Jesus. Sem superstições. Jesus era isso, você pode decidir. Crer ou não crer. Eu tenho o dever de expor a matéria histórica e de fazê-lo honestamente. Muitos jovens têm visto este trabalho e retornam ao Evangelho. Estudam-no cada vez mais. Na Itália, houve uma massa impressionante de conversões.

Voltando à sua experiência de partigiano, que você dizia ser mais patriótica do que política. Você acha, fazendo filmes como este em que a preocupação religiosa transparece mais do que a política, que o seu cinema continua sendo mais patriótico  do que político?

Eu não faço política, quando for meu dever eu serei patriota. Quando me chamarem para cumprir o meu dever, eu o farei.

Como é que você situa a sua obra dentro do momento italiano atual?

Eu não sou um diretor italiano, sou um diretor internacional. Não faço filmes italianos.

Ampliando então a pergunta: como é que você situaria sua obra dentro do momento internacional atual?

– É, de fato, um momento crucial, porque os jovens têm necessidade de acreditar, precisam de ideais para lutarem por alguma coisa. Eles perderam tudo, não têm mais nada, nem mesmo o amor. Então, eu queria levar esses ideais à massa juvenil. O amor espiritual de Irmão sol, irmã lua que é contra o materialismo, o acúmulo técnico, a riqueza. Com isso, na Itália, Inglaterra e nos EUA o filme explodiu. Jesus de Nazaré, quando foi lançado da TV italiana, atingiu 83,5% de audiência.

Quanto já rendeu o filme?

Para a NBC americana, ele foi vendido por 21 milhões de dólares (Cr$337 milhões), por um prazo de dez anos. Custou 12 milhões (Cr$ 192 milhões) e só na televisão dos EUA já rendeu 21 (Cr$ 337 milhões). Faz dinheiro como água. “Big business”.

Eu acho que você escolheu no seu filme uma estética deliberadamente grandiosa, muito reforçada pela utilização de lentes, teles, etc.

Eu adoto todas as técnicas: câmera na mão, transfocal, 800 mm, 25 mm, 18 mm, tudo.

Na primeira parte do filme, me pareceu que você procurou criar uma estética que fosse um equivalente cinematográfico da arquitetura da catedral medieval: a catedral é grande, imensa, porque ela dá uma idéia da escala divina, do sobrenatural; e o homem torna-se pequeno.

– Mas é que se fala de Jesus, não de um qualquer. Ele é o maior espírito que já existiu, a grandiosidade da visão. Quando ele fala para a multidão, são cinco mil pessoas no filme. E há a multiplicação dos pães. Mas na intimidade eu faço cenas mais simples. Como, por exemplo, no mundo da Nazaré, que era um mundo miserável, muito pequeno.

Mas isto é da profecia, tudo isto já tinha sido revelado pelos profetas. Era  a preparação para o grandioso que é o personagem de Jesus.

– Mas Ele explode, esta grandiosidade é inevitável quando se trata de Jesus. No “Sermão da Montanha”, o Evangelho diz que havia 10 mil pessoas. Ele falava muito forte com uma voz excepcional, era um homem excepcional. Mas ao mesmo tempo, como ele era um homem como todos os outros eu exagerei na miséria humana,  na pobreza. Você viu Pedro? É uma bela figura, não é?   

Seu filme seria então o Evangelho segundo Mateus e João?

- Mais João. João é incrível, ele conta os fatos e você percebe que ele os viu. E depois, João é o apóstolo do amor.

Irmão sol, irmã lua, Romeu e Julieta, Jesus Cristo segundo João, o apóstolo do amor. Tudo é centralizado em torno do amor. Eu queria que você discorresse sobre isso.

– Foi o homem que inventou o amor, o amor é a energia do mundo e o Cristianismo é o amor, o perdão, o sacrifício. Dar a vida pelo outro, perdoar tudo é o amor, não existe uma mensagem cristã sem o amor. Tudo é coração. Jesus não queria os inteligentes, Judas era muito inteligente, Ele queria os pobres de espírito, aqueles que estão prontos a receber sem pensar, por isso a sua mensagem durou dois mil anos. Porque é o amor.

 – Você certamente conhece os Irmãos Karamázov. Lembra-se de um sonho que Ivan tem e conta para o Aliócha e que se chama O Grande Inquisidor?

Sim, é belíssimo. Tudo aquilo é poder, é o poder que institui tudo aquilo, não é amor. A estrutura, o poder, a força não são o amor.

Quer dizer que tudo o que tem uma estrutura de poder elimina o amor ou parte dele?

Desde que existe o mundo acontece assim. Subsistem pouquíssimos poderes que conservam a idéia do amor.

 

Entrevista publicada no jornal O Globo em 17 de março de 1978