Chuvas de Verão, o Novo Filme de Cacá Diegues

Cinco dias de realidade suburbana

Durante quase dois meses, neste outono, a equipe de Chuvas de verão, novo filme de Carlos Diegues, se instalou em algumas casas de uma tranqüila rua de Marechal Hermes. E ali, por vários dias, caíram chuvas artificiais, necessárias para contar "a história de uma comunidade suburbana de parentes, amigos e vizinhos", conforme afirma o seu diretor. Realizada em parte em som direto, e contando em seu elenco com Jofre Soares, Rodolfo Arena, Sadi Cabral, Míriam Pires, Lourdes Mayer, Jorge Coutinho, Marieta Severo, Cristina Aché, Luís Antônio, que compõem um total de 15 a 16 personagens. Suas filmagens já estão encerradas e a montagem é de Mair Tavares. Posteriormente o filme receberá a música, que será especialmente composta por Paulinho da Viola. A produção é da Alter Filmes.

 

CACÁ DIEGUES, diretor

Velhice, e morte antes do tempo

 

– Eu soube que a história do filme é baseada em fatos reais.

Vamos colocar em termos. Na verdade esta é uma história que já estava mais ou menos pronta antes de eu fazer "Xica da Silva". Depois de fazer o filme comecei a reescrevê-la. A maior parte dos acontecimentos reproduzidos no filme é baseada em fatos reais, em fait-divers de jornal ou mesmo histórias que eu ouvi contar. Isto não quer dizer que o filme seja todo ele baseado em fatos reais, embora a maioria dos episódios o seja.

– Como é a estrutura do filme? Parece que ele se passa em cinco dias.

O filme tem uma estrutura muito fragmentária. Na verdade ele não conta uma história, é uma janela aberta através da qual passam os personagens. São cinco dias de uma realidade suburbana. De sexta a terça-feira, de uma comunidade de subúrbio de parentes, amigos, vizinhos etc ...

– Eu notei que a maior parte dos protagonistas do filme são antigos atores, como o Rodolfo Arena, que está presente aqui.

Realmente existem no filme um certo número de atores idosos. Eu não diria que é um filme sobre gente velha e sim um filme onde também existe gente velha. Entretanto, é um filme interessado nas pessoas de idade. Você já reparou que com a eclosão a partir dos anos 60 da contestação e reivindicação das minorias sexuais, políticas e sociais, não apareceu ainda uma no sentido etário. Existe o gaypower mas não existe o old power. É muito estranho isto. E no entanto as pessoas de idade são interessantíssimas. São pessoas que viveram experiências que a gente não viveu. Eu sei que estou dizendo uma coisa óbvia, mas é verdade. Em geral, as pessoas velhas são condenadas pelos jovens e pelo próprio sistema a um imobilismo social e a uma inatividade sexual. E este filme eu não vou dizer que é sobre isto mas possui este aspecto de que as pessoas de idade não são isso. Existe esta lenda do jovem como revolucionário e do velho como reacionário. Isto é um maniqueísmo absurdo. Muitas vezes você encontra pessoas de idade que são extremamente mais revolucionárias que certos jovens de hoje. Então o filme tem este aspecto uma espécie de interrogação sobre a idade, não como a aproximação da morte mas como a permanência da vida num estágio mais tardio. A tendência da civilização católica capitalista é de que no momento em que o indivíduo não é mais produtivo para a sociedade ele passa a esperar a morte. Este filme é exatamente o contrário disto, no sentido de que os personagens velhos servem para uma demonstração oposta. Porque a vida termina quando você morre e não quando você começa a esperar a morte. Em geral a relação com a velhice aparece de um ponto de vista muito piedoso. A piedade pelo velho é uma coisa extremamente reacionária porque soa como uma forma de condenação, de marginalização. Eu não me apiedo pela velhice, estou tentando mostrar que não se pode condenar um indivíduo à morte social antes que ele morra. Mas este é apenas um dos aspectos do filme, eu não quero que dê a impressão de que ele é sobre isto.

E os personagens? Como são eles?

O Rodolfo Arena faz o Lourenço, um velho palhaço de circo. O circo acabou e ele não tem onde trabalhar. A Lourdes Mayer é uma mulher de classe média que está investindo, fica aplicando em caderneta de poupança, contando os juros da correção monetária, aquela coisa. O personagem do Jorge Coutinho é um operário que foi jogador de futebol, quebrou a perna e não pode mais jogar. Este é um filme sobre as pessoas que não vivem aquela vida que na verdade gostariam de ter vivido. Em princípio ia se chamar "Duas vidas": aquela vida que você é obrigado a viver, ou por razões fortes, ou por pressão social ou então em virtude da própria realidade; e uma outra vida que, ou você vive secretamente, ou simplesmente não vive por questões de repressão social ou por razões internas mesmo. E o filme é sobre como é fácil explorar esta contradição e muitas vezes assumir um certo radicalismo. Então este não é um filme decadente porque se alguns personagens não resolvem esta contradição outros a resolvem. Este é um filme otimista.

 

RODOLFO ARENA, 'Lourenço"

O palhaço solitário estupra crianças

Rodolfo Arena, 48 anos de profissão de ator, mais de 110 filmes feitos. "Seu eu fosse ator estrangeiro, já estaria rico", diz ele. Começou como artista de circo, mas afirma que o seu ídolo quando criança era Carlitos. "Talvez por isso eu seja ura ator tragicômico".

– Rodolfo Arena, como é o seu personagem neste filme?

0 palhaço realmente adora crianças. Porque ele vive da criança e em geral ele é uma criança. Aliás, nós todos temos qualquer coisa da criança e se não tivéssemos, já teríamos acabado. Pois o Cacá leu nos jornais que em Recife um palhaço havia estuprado uma criança e colocou este fato na fita. Ele achou que eu seria a pessoa para fazer este personagem porque adoro criança. O palhaço Lourenço e o Afonso são dois grandes amigos. E quando chega uma situação tal que o Afonso é preso, ele — para desviar a atenção da polícia do Afonso — vai e confessa o crime. É um personagem gostoso de fazer, que a gente faz sem sacrifícios. Temos trabalhado bastante, ontem mesmo fez um frio de rachar, mas vale a pena.

Você considera este personagem também tragicômico?

Mais ou menos. É um personagem de certa decadência. Um palhaço de circo que vive de festinhas em casas de família. Não é aposentado por algum motivo. Até que chega o dia em que ele estupra uma criança.

– O que o leva a fazer isto ?

Não sei, talvez pela solidão. Ele é um homem sozinho.

 

JOFRE SOARES, "Afonso"

O choque de um aposentado

Jofre Soares é um dos atores de maior atividade no cinema brasileiro atualmente. Dos seus últimos filmes poderiam ser citados, somente entre aqueles que não foram ainda lançados, "Tenda dos milagres", "Pastores da noite , "Crueldade mortal", "Quem Matou Pacífico", "Delmiro Gouveia" e "Morte e vida Severina".

Jofre, como é o universo do Afonso, o personagem que você faz em "Chuvas de verão"?

E mais um personagem que eu faço no cinema brasileiro extraído da vida real, do dia a dia. Aqui nesta rua, em Marechal Hermes, deve existir muitos Afonsos. É um sujeito que se aposentou, viveu a sua vida, saia às 6 horas da manhã, voltava às sete da noite. Assumiu o seu papel, que é o que todos devemos fazer. Aposentou-se e aquele mundo que ele não esperava que existisse veio a descobrir nestes cinco dias em que se passa o filme. Uma pessoa que leva a vida que ele tinha, não sabe de nada do que acontece. De repente, aparece um bandido na sua casa e o seu amigo Lourenço — que é uma pessoa por quem ele tem uma imensa consideração — estupra uma criança. Isto é um outro lado do mundo, é um choque terrível e ele fica desarvorado. Este é o "seu" Afonso, do qual existem centenas por ai. Se aposentam e ficam parados no tempo.

E como se dá o fato do bandido se refugiar na casa dele?

De repente ele encontra um bandido na casa dele, ele que talvez só conhecesse um bandido pela leitura do jornal ou através da televisão. E aí um dia ele vê um bandido real em sua casa. O interessante é que quando dizem — "este é um bandido perigoso", ele responde — "parecia apenas uma criança suja de sangue". O Honório, o bandido, é o resultado dos problemas sociais decorrentes da grande explosão demográfica a que nós temos assistido.

– Você, que tantos filmes tem feito ultimamente, como sente a passagem de um personagem para o outro? Muitas vezes eles são tão diferentes entre si.

Eu acho que é preciso observar um pouco. Não sei se você notou mas eu pouco falo, fico mais olhando. Sou muito observador. Na verdade é um pouco difícil sair de um personagem para outro. De um "Crueldade mortal", em que faço um velho que é linchado, para o "seu" Afonso, por exemplo. Ou então mudar do grande homem de terras em "Delmiro Gouveia" para o seu Afonso. Mas como eu tenho uma boa experiência, eu vou peneirando os personagens que eu conheço na realidade. Meus professores estão aí na vida real. É só a pessoa observar. Em geral eu recebo o roteiro, leio uma ou duas vezes e fico ouvindo o diretor falar sobre os personagens. O que tem me dado esta capacidade, é uma continuidade de trabalho e o fato de ouvir o diretor. Na verdade muitas vezes eu nem sei direito o texto, eu sou muito relaxado.

 

CRISTINA ACHÉ, "Lurdinha"

A empregada busca nova vida

Cristina Aché representa em "Chuvas de verão" a personagem de Lurdinha, uma empregada da casa de "seu" Afonso. O personagem representado por Jofre Soares tem uma filha que mora em São Paulo, é viúvo e corteja uma vizinha cuja intérprete no filme é Míriam Pires. Cristina Aché é no filme a empregada por quem ele tem também uma relação paternal.

Cristina, quem é Lurdinha, a empregada do "seu" Afonso?

Ela entra desde o primeiro dia em que começa o filme. O Afonso chega em casa e encontra o Honório que no filme é interpretado pelo Luís Antônio um marginal que está sendo procurado. Ela esconde o namorado na casa do seu patrão. Na verdade não há propriamente uma relação de patrão e empregado mas um sentimento meio paternal. Ela é muito pobre, sempre viveu nesses conjuntos residenciais que existem por aí e esconde o namorado porque realmente gosta dele. Resolve então assumir as conseqüências e conta para o seu Afonso. Ele resiste a princípio mas acaba admitindo o fato. A isso se junta o fato de que,em frente à casa dele, o Lourenço seqüestra uma menina. Ela vem a descobrir isto pela leitura dos jornais porque está interessada nas notícias sobre o namorado. O Afonso não acredita porque o palhaço ê uma pessoa boníssima e eles são muito amigos. No entanto, ela tem absoluta certeza disto porque viu a menina entrar na casa do palhaço. Então nestes momentos do filme ela é o único personagem que se envolve, porque está querendo salvar a menina.

Quando ela fala sobre o seqüestro da menina seu Afonso acredita nela ?

Não, em hipótese alguma. Ninguém acredita, porque o mais importante é o clima da aparência, o que o seu Lourenço representa, que não é nunca um estuprador. Ela tenta salvar a menina mas não consegue. Mas no final o Juraci que no filme é representado pelo Paulo César Peréio descobre e entrega o Honório para a policia, porque há uma recompensa enorme. E o Juraci é um virador. Quando isto acontece, no dia seguinte eles saem de manhã e vão embora para Goiás. E o Afonso tanto gosta da Lurdinha que vai buscar o dinheiro e ajuda a fuga deles. Ele se torna um cúmplice pela relação que tem com sua empregada. A policia chega depois e aí o seu Lourenço se entrega. Eu te contei um pouquinho da história, mas o que eu acho importante é dizer que o personagem da Lurdinha não acredita neste tipo de marginalidade. Ela está cansada de saber que bandidos como o Honório têm uma vida curta, morrem antes de completar 25. anos. E a fuga que eles empreendem é em busca de uma vida nova, uma vida diferente daquela marginalidade sem sentido. E dentro da condição social deles isto é o máximo que se pode fazer. Ela não tem muitos sonhos, sabe apenas que esta vida não tem sentido.

Eles chegam a realizar alguma coisa depois da fuga ?

Eles não realizam nada, realizam apenas uma fuga. Vão embora.

 

Sérvulo Siqueira

 

Publicada no jornal O Globo em 28 de junho de 1977