17 de dezembro
de 2014
O
canto de sereia* americano em Cuba
O
reconhecimento diplomático de Cuba ‒ trombeteado pelos meios de
comunicação corporativos como um gesto de grande liberalidade do governo
genocida de Barack O'Bomber ‒ é também o reconhecimento do fracasso de
uma política minuciosamente planejada e executada durante mais de meio
século.
Após
vir tentando sufocar o povo cubano por mais de 50 anos ‒ por meio de um
brutal bloqueio econômico, contínuos atos de terrorismo, financiamento
de grupos de oposição, guerra bacteriológica e sabotagem ‒ o império
americano acena agora com insignificantes migalhas no intuito de
ludibriar o adversário.
Desde o início da década de 1960, os gringos recorrem a todo o tipo de
expedientes para desestabilizar a pequena ilha situada a menos de 100
milhas do estado americano da Florida. O reconhecimento diplomático do
país caribenho é um claro indicador de uma vitória do governo e do povo
cubanos porque demonstra que o império americano não foi capaz de tomar
o poder em Cuba como o fez em quase todas as nações da América Latina,
que sempre considerou como seu quintal.
Como
pretendem os ianques que todo este imenso currículo de atos delinquentes
protagonizados desde a invasão militar de Playa Girón (1961) e as
centenas de tentativas de assassinato de Fidel Castro, sem contar outros
tantos atos de provocação e desestabilização, sejam subitamente
esquecidos pelo governo e o povo da ilha? Quais são os indicadores que
apresentam para que os cubanos acreditem agora que o governo de
Washington os respeitará no futuro, ao invés de considerá-los apenas uma
colônia de férias que um dia ousou conquistar a sua independência?
Como, então, nem uma palavra sobre o fim imediato do bloqueio econômico
imposto à pequena ilha ‒ um odioso ato de guerra que perdura por mais de
50 anos a despeito de sua quase unânime condenação pela esmagadora
maioria dos países membros da Organização das Nações Unidas, que a cada
ano vota pela sua extinção? Ao longo do tempo, várias estimativas foram
levantadas sobre os efeitos catastróficos do bloqueio sobre as condições
de vida em Cuba e considera-se hoje que ele possa ter trazido um
prejuízo de várias centenas de bilhões de dólares para o país caribenho.
Os Estados Unidos estariam dispostos a reparar todos esses danos?
E
quais os argumentos que Tio Sam utilizou para justificar um ato tão
ignominioso? Nos primeiros tempos, dizia-se que Cuba organizava e
treinava grupos subversivos na América Latina mas não se esclarecia que
muitos desses grupos lutavam para derrubar ditaduras fabricadas e
patrocinadas pelo governo dos Estados Unidos.
Com
o tempo, nem mais este argumento se tornou possível porque ‒ com a
exceção das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) ‒ as
guerrilhas e os movimentos armados de esquerda foram desaparecendo
progressivamente do cenário da região.
O
bloqueio, no entanto, não apenas persistiu mas foi até acentuado pela
legislação do Congresso americano, que o tornou ainda mais cruel e
impiedoso.
Por
fim, hoje o presidente afro-americano dos Estados Unidos anunciou que o
império ianque finalmente reconheceu diplomaticamente o governo de Cuba
mas não foi capaz de extinguir este infame bloqueio que proíbe, por
exemplo, que uma empresa que comercia com Cuba, ou que apenas aporte em
território cubano, não pode estabelecer qualquer relação comercial com
uma firma dos Estados Unidos e o governo de Washington, ou com qualquer
outra empresa que mantenha relações com estes entes, por um período de
sete anos.
Como
compensação para que o povo cubano aceite este ato de tanta
generosidade, Obama oferece agora uma pequena ajuda tecnológica, aumenta
o valor das remessas que cubanos podem fazer ao seu país natal e acena
com a chegada dos seus meios de comunicação, ONGs, além da possibilidade
do fim do bloqueio somente após sua votação no Congresso dos Estados
Unidos. Logo deverão chegar os tecnocratas, os executivos, as
think-tanks com projetos mirabolantes e fala macia para a tão desejada
retomada do paraíso tropical perdido em meados do século passado.
Subsiste no entanto uma pergunta. Obama estaria pretendendo que Raúl
Castro e seu irmão Fidel, assim como todo o povo cubano, acreditem que
um congresso extremamente reacionário ‒ completamente dominado por
republicanos da pior extração ‒ irá decretar o fim de um bloqueio que já
dura mais de 50 anos?
Como
não se pode imaginar que seu raciocínio seja assim tão primário, é
natural supor que suas intenções devam ir um pouco mais além. O genocida
presidente norte-americano estaria pretendendo vestir uma outra pele e,
se não parecesse injusto com os animais ‒ que têm mais dignidade ‒ se
poderia dizer que Obama troca agora a pele de lobo por uma outra de
cordeiro e acredita que, com este gesto, vai reconquistar a confiança
dos povos da América Latina que os Estados Unidos vêm progressivamente
perdendo.
Talvez esteja convicto também ‒ movido por uma realpolitik que vigora
desde os tempos de Felipe da Macedônia ‒ de que "não há fortaleza que
resista se você fizer entrar nela um burro carregado de ouro".
Os
tempos mudaram e hoje não há mais burros carregados de ouro e nem os
americanos estariam dispostos a carregá-los, especialmente para alguns
cucarachas do Caribe. Podem apenas tilintar algumas moedinhas e foi isto
que fizeram no dia histórico de hoje.
Por
outro lado, não deixa de parecer estranho que o reconhecimento ocorra
exatamente no momento em que Washington joga todas suas cartas visando a
destruição da Rússia, o maior aliado de Cuba ao longo dos últimos 50
anos e seu maior defensor diante do bloqueio americano. Deixariam os
cubanos uma antiga aliança ‒ não tão sólida hoje quanto no passado, mas
ainda assim bastante consistente com um amigo de longa data ‒ por um
vago gesto de amizade de um velho inimigo?
Os
cubanos certamente irão debater por algum tempo esta decisão
aparentemente tão intempestiva. Por certo, devem ponderar o histórico
dos Estados Unidos, o país mais belicoso do século 20 embora nunca tenha
feito uma declaração formal de guerra, sua prática de não assinar
acordos e ‒ depois de assiná-los ‒ de jamais cumpri-los, sua natureza
essencialmente imperialista e de domínio contida no ideário do destino
manifesto, sua obsessão, frequentemente referida por Obama, em se
considerar uma nação"excepcional" e, muito provavelmente, seu
retrospecto de recorrer à velha diplomacia canhoneira quando
contrariados em seus propósitos.
Também deverão levar em conta a reflexão ‒ que citam com frequência ‒ de
um seus heróis, o poeta José Martí:
‒
Viví en el monstruo y le conozco las entrañas…
Sérvulo Siqueira
* Ao
retornar para Ítaca, depois da guerra de Troia, Ulisses passa pela ilha
de Circe onde os marinheiros escutam o canto inebriante das sereias.
Para não se deixarem seduzir por seu canto, os membros da tripulação
tinham que proteger os ouvidos e se agarrar ao mastro do navio. Aqueles
que se deixavam levar eram arrastados contra os rochedos e afundavam nas
profundezas do oceano. O evento foi narrado pelo poeta Homero na
Odisseia.
O
cavalo de Troia, um episódio lendário supostamente ocorrido em uma
guerra na Ásia Menor, é também referido na Odisseia. Utilizando-se de um
ardil, os gregos teriam introduzido um gigantesco cavalo de madeira em
sua impenetrável fortaleza, o que lhes possibilitou conquistar a cidade.
Para que isto acontecesse, foi necessário que os troianos acreditassem
que estavam recebendo um presente.
Ambos os episódios contém lições para a atualidade. (SAS)
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